Tem-se observado, constantemente, no âmbito de investigações criminais envolvendo a apuração de crimes contra à ordem tributária, um gravíssimo problema: a livre e indiscriminada troca e obtenção de informações bancárias de contribuintes entre a administração tributária e administradoras/operadoras de cartão de crédito e débito, sem que exista, ao menos, procedimento administrativo tributário instaurado previamente ou, ainda, autorização judicial.

Na maioria dos casos, as acusações são calcadas em suposta omissão de receita tributável, aferidas mediante análise da diferença apurada entre os valores relativos às operações efetuadas pelo estabelecimento e informados pelas administradoras de cartões de débito e crédito e os valores declarados pelo contribuinte à Fazenda estadual.

Ocorre que, no campo tributário, a troca e obtenção de informações não pode ser realizada sem que, no mínimo, exista procedimento administrativo prévio instaurado ou sem com que o contribuinte tenha sido notificado para fins de defesa, a fim de garantir o regular exercício do contraditório e da ampla defesa.

A título de exemplo, vejamos precedente do TJ-PI, acostando-se ao quanto firmado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento conjunto das ADIs 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE AUTOS DE INFRAÇÃO. TROCA DE INFORMAÇÕES ENTRE A ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA E AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. ARTS. 5° E 6° DA LEI COM-PLEMENTAR FEDERAL N° 105/2001.[…] De sorte, a despeito da ausência de quebra de sigilo bancário, os Estados e Municípios não podem requisitar livremente informações das empresas administradoras de cartões de crédito e débito; devem, antes, regulamentar o modo de como estas informações serão obtidas para fins de resguardar as garantias processuais do contribuinte. Não pode o órgão fiscal se valer da quebra de sigilo em momento anterior à instauração de procedimento administrativo ou sem ordem judicial, tal como ocorrido no caso dos autos.  […] Em outros termos, evidente que a utilização de dados constantes dos arquivos das operadoras de cartão de crédito/débito não se deu no curso do procedimento administrativo, mas sim consistiu no ponto de partida do próprio levantamento fiscal, no qual foi constatada a infração. Veja-se que o artigo 6º da Lei Complementar 105/01 é taxativo ao facultar o exame de documentos, livros e registros de instituições financeiras, somente se (i) houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e (ii) tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente. Dessa forma, conclui-se pela nulidade dos autos de infração ora impugnados, ante a ausência de procedimento administrativo prévio à autuação da empresa apelada, conforme entendimento esposado pelo magistrado de origem. Diante do exposto, voto pelo conhecimento e parcial provimento da Apelação, a fim de reformar a sentença recorrida apenas para afastar a ocorrência da decadência do direito de lançar os créditos relativos às competências 10/08, 11/08 e 12/08, objetos do auto de infração nº 1515363001892-7 (ID. 8489722).” (APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA, 0025196-40.2015.8.18.0140, Desembargador JOSÉ WILSON FERREIRA DE ARAÚJO JÚNIOR, j. 06/07/2023)

No mesmo sentido: (TJ-SP – AC: 10522650620178260506 SP 1052265-06.2017.8.26.0506, Relator: Décio Notarangeli, Data de Julgamento: 13/04/2021, 9ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 13/04/2021); TJ-MT – APL: 00025157720158110041 MT, Relator: Helena Maria Bezerra Ramos, Data de Julgamento: 25/2/2019, 1ª Câmara de Direito Público e Coletivo, data de publicação: 21/3/2019.

Direitos e garantias em prol do acusado

No âmbito do direito penal e processual penal, em os direitos e garantias fundamentais devem sempre pender em prol do acusado, entendemos que o referido modus operandi motiva no próprio reconhecimento da ilicitude dos elementos obtidos, em observância ao quanto decidido pela Suprema Corte, bem como em atenção às garantias constitucionais do direito ao sigilo de dados (artigo 5º, incisos XII, da Constituição), do contraditório e ampla defesa, devido processo legal (artigo 5º, incisos LIV e LV  da Constituição), como também em observância à cadeia de custódia da prova (artigo 158-A e seguintes do Código de Processo Penal), devendo tais elementos serem desentranhados dos autos (artigo 157 do Código de Processo Penal).

 

Outrossim, o Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do RHC 187335/PR, recentemente, consolidou o entendimento acerca da vedação quanto ao compartilhamento de Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s) sem prévia investigação formal instaurada, sob pena de se permitir verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), raciocínio que, mutatis mutandis, ao nosso sentir, pode ser claramente aplicado analogicamente à tese que ora se sustenta.

Portanto, na presente, defendemos a necessidade de instauração de procedimento administrativo tributário previamente à troca e obtenção de informações oriundas de administradoras de cartões junto à administração tributária, sob pena de reconhecimento da ilicitude dos elementos colhidos, nos termos do artigo 5º, inciso XII, da Constituição, do artigo 158-A do Código de Processo Penal.

 

  • é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico pela PUC-MG, sócio-fundador do escritório Leonardo Ruffo Advocacia.

     

 

Fonte; Conjur