Uma recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC) reacendeu a discussão sobre abusividade de voto de credores em recuperações judiciais. Por unanimidade, a 2ª Câmara de Direito Comercial da Corte entendeu que não houve abuso no voto da maior credora do caso, que rejeitou o plano apresentado pela devedora, a empresa de transporte Transrodace. A proposta de pagamento havia sido aprovada pelo juízo de primeiro grau, que desconsiderou o voto da credora no quórum da assembleia. Porém, o TJSC levou em consideração parecer do Ministério Público (MP), com o posicionamento de que a decisão não seguiu os requisitos da lei, e reformou a sentença, determinando a apresentação de um novo plano. Se ele for rejeitado, é possível a conversão em falência. O caso é considerado peculiar por especialistas. Isso porque a credora Maria Elenice Giacomelli teria um “superpoder” de rejeitar ou aprovar o plano sozinha. Ela é a única na classe II, de garantia real, e tem mais de 50% dos créditos do processo – R$ 9 milhões de um total de R$ 15,3 milhões submetidos à ação. É um caso clássico de abuso de direito de voto” — Felipe Lollato A dívida decorre de uma condenação em que a empresa foi obrigada a indenizá-la por um acidente de trânsito ocorrido no ano de 1996. A tragédia provocada pela transportadora deixou graves sequelas, como traumatismo craniano e incapacidade de trabalhar. A proposta da Transrodace era perdoar toda a dívida em troca do pagamento de R$ 40 mil mensais até a sua morte, o que foi rejeitado pela credora. Para os outros credores, era previsto deságio de 85%, sugestão aceita pelas outras classes na assembleia, realizada em outubro de 2023. Para um plano ser aprovado, é preciso maioria de credores em todas as classes. Mas existe uma exceção legal, usada pela juíza Aline Mendes de Godoy, da Vara Regional de Falências e Recuperações Judiciais e Extrajudiciais da Comarca de Concórdia. Ela homologou o plano por meio do “cram down”, previsão na lei que permite a aprovação mesmo que uma das categorias o rejeite. Para acionar o mecanismo, porém, devem ser seguidos três requisitos, como ter voto favorável de mais de 50% dos créditos em assembleia e de um terço dos credores na classe que rejeitou o plano. Segundo o MP, nenhum dos dois foram cumpridos. A juíza também havia entendido que o voto de Maria Elenice foi abusivo. Isso porque ele estaria “condicionado ao proveito individual da própria credora, voltado manifestamente à proteção de seus interesses exclusivamente particulares” (processo nº 5020935-93.2024.8.24.0000). A credora, em recurso ao TJSC, defendeu não ser obrigada a aceitar um pagamento que lhe desfavoreça. O MP se posicionou no mesmo sentido, o que foi acatado pelo relator, o desembargador Getúlio Corrêa. “Não vejo ilicitude naquele que deseja receber aquilo que lhe é devido”, disse o procurador Alex Sandro Teixeira da Cruz, em parecer, completando que “nada há na lei que obrigue o credor a não defender seus próprios interesses”. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema são divididos. Em alguns da 4ª Turma, foi permitido afastar a aplicação dos requisitos do cram down para evitar abuso de direito de voto. Nos processos, a Corte decidiu que o juiz pode flexibilizar a previsão legal “preferindo um exame pautado pelo princípio da preservação da empresa” (REsp 1337989/AREsp 1551410). Porém, em decisão de fevereiro deste ano, a 4ª Turma, por unanimidade, reformou acórdão para desconsiderar o abuso no voto de um credor que rejeitou o plano. Ele era titular de cerca de 95% da dívida e foi proposto deságio de 90%. Para os ministros, não é razoável exigir que o credor “manifeste incondicional anuência na redução do equivalente a 90% de seu crédito, em benefício a coletividade de credores e em detrimento de seus próprios interesses” (REsp 1880358). Na visão de Rogério Olsen da Veiga, sócio-fundador do Olsen da Veiga Advogados, que representa Maria no caso, a decisão do TJSC foi coerente e privilegia o equilíbrio entre credores e devedora. “A lei foi alterada em 2020 para dizer claramente que o credor vota no seu interesse e de acordo com sua conveniência”, diz Veiga, citando alteração no artigo 39 da Lei nº 11.101/2005. Foi incluído trecho que garante que “o voto será exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem”. Para o advogado, não há qualquer ilícito por parte da credora. “Ela só está querendo receber o valor da condenação a que tem direito. Mas a empresa tem protelado o pagamento”, completa. Com a decisão do TJSC, o advogado da credora apresentou novo plano, que prevê a venda de imóveis da transportadora para a quitação dos débitos e melhora as condições para todos os credores- mas, para Maria, não haveria deságio. Felipe Lollato, sócio do Lollato, Lopes, Rangel, Ribeiro Advogados e representante da Transrodace no caso, recorreu da decisão. Para ele, é um caso “clássico” de abuso de direito de voto porque a credora se recusa a negociar. “Ela não aceitou negociar um centavo e quer receber a integralidade do crédito”, afirma o advogado, acrescentando que configura “enriquecimento sem causa”. Para Lollato, a proposta oferecida à Maria seria mais do que suficiente para ela ter uma vida digna. E o que motivou o pedido de recuperação, diz, foi tanto o ambiente econômico como os sucessivos bloqueios na conta da empresa que a credora efetuava. “A empresa não conseguia trabalhar porque a todo momento tinha bloqueio na conta”, afirma. A advogada Samantha Longo, sócia do Longo Abelha Advogados e membro do Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências (Fonaref) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), diz que a situação é muito particular por conta da natureza do crédito. A credora é considerada uma ”supercredora”. “Se ela rejeita o plano, não tem como ele ser aprovado”, afirma. O Judiciário, acrescenta Samantha, tem analisado caso a caso, considerando se esses “supercredores” querem contribuir com o soerguimento da empresa ou se estão “só olhando para o próprio umbigo”. “Hoje existem dois caminhos para quando não se aprova um plano. Você pode se valer do artigo 58 e o juiz, preenchidos os requisitos, faz o cram down, ou também existe a possibilidade de pedir a abusividade do voto de um credor”, explica. A advogada Juliana Bumachar, sócia do Bumachar Advogados, diz que na maior parte das vezes os juízes reconhecem a abusividade do voto e aplicam o cram down. “O tribunal [TJSP] considera quase que em sua maioria a abusividade sempre com a justificativa de preservação da empresa”, diz ela, citando pesquisa feita com a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) sobre casos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Um dos indícios de abusividade, afirma a advogada, é o fato de o credor não querer negociar. E quando ficam constatadas algumas hipóteses, acrescenta, como querer rejeitar o plano porque recebe melhor na falência do que na recuperação. “Se existe interesse egoístico de um credor em detrimento de todos os demais e se esse credor tem o poder que ela tem para dirimir o andamento da recuperação judicial, houve a tentativa de negociar, o juiz pode considerar os danos que podem ter sido causados e que não teria outra saída.”

Fonte: Valor Econômico