Em 2023, o STF (Supremo Tribunal Federal) julgou os embargos de declaração na ADC 49 e pacificou o entendimento sobre a impossibilidade de exigência de ICMS nas operações de transferência entre estabelecimentos de mesma empresa, em razão da ausência de fato gerador do imposto. Na mesma oportunidade, os ministros definiram que os créditos da entrada não deveriam ser objeto de estorno, devendo-se garantir aos contribuintes a faculdade de transferir tais créditos para o estabelecimento de destino, tudo isso a partir de 2024, pois foram modulados os efeitos da decisão.

 

Com isso, os contribuintes achavam que a controvérsia sobre o tema do ICMS nas transferências, que se estende há décadas, estava finalmente superada. Mas um novo capítulo da discussão foi inaugurado com a edição do Convênio ICMS nº 178, publicado em dezembro de 2023 pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).

Tal norma, atualmente vigente, prevê a obrigatória transferência dos créditos de ICMS, do estabelecimento de origem para o destino, na remessa interestadual de bens e mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade. A previsão foi internalizada pelo estado de São Paulo mediante a edição do Decreto nº 68.243/23.

No entanto, a obrigatoriedade da transferência de créditos de ICMS constitui verdadeira tributação indireta das operações interestaduais entre estabelecimentos do contribuinte pelo ICMS, o que fez muitos contribuintes questionarem a norma editada pelo Confaz — e internalizada pelo estado de São Paulo — perante o Tribunal de Justiça de São Paulo.

Afinal, nos termos do Convênio 178/23, as transferências interestaduais entre empresas devem ser operacionalizadas mediante destaque do ICMS e seu registro a débito na escrita fiscal, tendo sido instituída base de cálculo e alíquotas específicas para estas situações, o que se traduz em situação fática exatamente igual à hipótese declarada inconstitucional pelo STF na ADC 49 — tributação, pelo ICMS, de remessas entre estabelecimentos de mesma titularidade.

A norma do Confaz reproduziu, inclusive, a mesma redação do antigo §4º do artigo 13 da LCP 87/96, o qual estabelecia a base de cálculo na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro estado, pertencente ao mesmo titular, dispositivo este que foi declarado inconstitucional pelo STF, e posteriormente foi revogado pela Lei Complementar (LCP) nº 204/23, editada para adequar a Lei Kandir ao julgamento da ADC 49.

 

Ou seja, a exigência da obrigatoriedade da transferência de créditos de ICMS nas operações entre estabelecimentos da empresa incorre nos mesmos efeitos da cobrança do imposto nas referidas operações, reestabelecendo-se o cenário anterior ao julgamento da ADC 49, e reintroduzindo de maneira infralegal os dispositivos declarados inconstitucionais e expressamente revogados pela LCP 204/24, editada após a entrada em vigor do Convênio 178/23.

Salta aos olhos a inconstitucionalidade da norma do Confaz, que não poderia ter previsto a obrigatória transferência de créditos nas operações entre estabelecimentos do mesmo titular, extrapolando as previsões da LCP nº 204/23 e o julgamento da ADC 49. Tal procedimento, se obrigatório, corresponde à tributação, exatamente como era antes do julgamento do STF que pacificou a inexistência de fato gerador de ICMS nas operações de transferência.

Estados regulamentariam como o crédito seria usado

Contudo, até o momento a maioria das decisões colegiadas do TJ-SP sobre o tema é desfavorável aos contribuintes.

As 1ª [1], 9ª [2] e a 13ª [3] Câmaras de Direito Público já se pronunciaram no sentido de que o Convênio 178/23 foi editado de acordo com o disposto no ADC 49, e que os estados poderiam regulamentar a forma como o crédito seria utilizado nos casos de remessa de mercadorias para estabelecimentos de mesma titularidade. Ainda, segundo o TJ-SP, o contribuinte não poderia utilizar irrestritamente seus créditos em quaisquer dos seus estabelecimentos.

Tal interpretação, no entanto, não considera a própria racionalidade do julgamento realizado pelo STF sobre o tema e, principalmente, ignora o teor dos votos dos ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin na ADC 49, que deixaram muito clara qual era a intenção do STF no sentido de que a transferência de créditos nas operações interestaduais de um mesmo contribuinte é uma opção do sujeito passivo, mencionando expressamente em seus votos os termos “faculdade” ou “direito” dos sujeitos passivos, e nunca como uma obrigação, como ilegalmente previsto pelo Convênio ICMS nº 178/23.

A própria ementa do julgamento vinculante estabelece que “(…) exaurido o prazo sem que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos”. O STF não falou em obrigação, dever ou necessidade de transferência de créditos, mas sim em direito do contribuinte.

Como se não bastasse, em 13 de junho de 2024, o legislador derrubou o veto presidencial ao §5º do artigo 12 da LCP nº 204/23 para esclarecer que a transferência de créditos de ICMS nas operações entre estabelecimentos do mesmo titular não deve ser interpretada como obrigatória, como noticiado pelo Senado [4]. A superveniência da derrubada do veto esclareceu que:

  • as operações interestaduais de transferência de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa não configuram fato gerador do ICMS (§4º), conforme ADC 49;
  • o contribuinte pode optar em equiparar tais transferências a uma operação tributada (§5º); e
  • caso opte pela não tributação dessa operação, o estabelecimento remetente tem direito de manter “o crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor do contribuinte, inclusive nas hipóteses de transferências interestaduais” (§4º);
  • por fim, caso opte por transferir os créditos para o estabelecimento de destino, deve obedecer aos limites dos créditos que podem ser transferidos e/ou mantidos no estabelecimento de origem (parte final do §4º e incisos I e II), isto é, podem transferir tudo (respeitando os parâmetros legais), uma parcela dos créditos ou nada.

Não faria sentido que o legislador outorgasse a possibilidade de tributar a operação (em que obrigatoriamente se transfere o crédito ao destino), se tal transferência já fosse obrigatória pelo destaque do ICMS em nota fiscal, como prevê o Convênio ICMS nº 178/23.

No entanto, mesmo após a derrubada do veto presencial, a 2ª Câmara de Direito Público [5] proferiu neste mês acórdão negando provimento ao agravo de instrumento do contribuinte, e mantendo a transferência de créditos de ICMS como obrigatória, por alegadamente se tratar de mera obrigação acessória de destaque do imposto, que não violaria o previsto pelo STF na ADC 49, validando-se, em caráter perfunctório, as exigências do Convênio ICMS nº 178/23.

Tributação mal disfarçada

As decisões do TJ-SP não têm se atentado ao fato de que admitir a situação acima seria o mesmo que reconhecer que os oito anos de julgamento da ADC 49 não serviram para absolutamente nada, e que os estados podem, mediante convênio, restabelecer o mesmíssimo regime que existia anteriormente ao julgamento vinculante pelo STF. Não se trata de “obrigação acessória, mas sim de verdadeira tributação (mal) disfarçada.

A única decisão colegiada favorável localizada no tribunal, proferida pela 13ª Câmara Direito de Público [6], foi posteriormente reformada por vício formal na intimação da Fazenda, e ainda não houve novo julgamento de mérito. No entanto, as razões de decidir são perfeitamente aplicáveis: entendeu-se que o Convênio 178/23 viola o decidido na ADC 49, e autorizou o contribuinte a apropriar-se do crédito referente ao ICMS, de forma facultativa, nas operações de mera transferência entre unidades de sua titularidade.

Esse também é o racional aplicado pela 2ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo ao deferir a liminar [7], tendo o juízo reconhecido expressamente que na ADC 49 os ministros trataram a necessidade de transferência de créditos nas operações de estabelecimentos do mesmo titular como facultativa, de modo que o Convênio ICMS nº 178/23 teria extrapolado tais previsões.

No entanto, o posicionamento da Vara parece não estar consolidado, pois em sentença proferida mais recentemente em outro processo, foram validadas as disposições do Convênio, fundamentando que “a obrigatoriedade da transferência do crédito tem fundamento razoável, porque, sem essa, haveria acúmulo de créditos no estabelecimento localizado no Estado de origem, (…) o que oneraria o Estado de origem” [8].

Tal interpretação não se atenta ao fato de que ao tornar o direito à transferência de créditos, facultado pelo STF, em obrigação, operacionalizada por destaque do ICMS nas notas fiscais de saída — mediante aplicação das alíquotas interestaduais e base de cálculo anteriormente prevista na Lei Kandir —, o Convênio 178/23 replica situação idêntica à anterior ao julgamento da ADC 49 e gera o mesmo efeito prático da tributação das operações pelo ICMS, só que por via oblíqua, o que obviamente é inconstitucional/ilegal.

O desembargador Antônio Faria, da 8ª Câmara de Direito Público [9] parece ter compreendido melhor a questão suscitada pelo contribuinte, apesar de ter indeferido a antecipação da tutela recursal, pois proferiu decisão reconhecendo que, “com a derrubada do veto e a promulgação da Lei nº 204/23, há, certamente, a expectativa de alteração do Convênio ICMS 178/23, que também trata do assunto. Todavia, tal ainda não ocorreu”.

Realmente, a derrubada do veto presidencial à LCP 204/23 deixa claro que o Convênio 178/23 e o Decreto 68.243/23 foram editados em completa discordância com as previsões da lei complementar, e que não poderiam ter imposto a obrigatória transferência de créditos nas operações interestaduais entre estabelecimentos, sob pena de violação aos termos do julgamento da ADC 49 e à própria Lei Kandir.

Porém, enquanto vigente o Convenio 178/23, cabe ao Judiciário afastar suas ilegais disposições, nos termos do que foi esclarecido pelo próprio legislador, e em linha com o pacificado pelo STF.

Isto tudo dito, nota-se que as decisões do TJ-SP proferidas até o momento indicam que estão longe do fim as discussões entre Fisco e contribuinte envolvendo o ICMS nas transferências interestaduais de estabelecimentos do mesmo titular, apesar da decisão proferida com efeitos vinculantes pela Suprema Corte.

 


[1] Ref.: TJSP; AI 2145242-19.2024.8.26.0000; Rel. Rubens Rihl; 1ª Câmara de Direito Público; j. em 10/06/2024.

[2] Ref.: TJSP; AI 2171807-20.2024.8.26.0000; Rel. Oswaldo Luiz Palu; 9ª Câmara de Direito Público; j em 04/07/2024.

[3] Ref.: TJSP; AI 3001876-02.2024.8.26.0000; Rel. Djalma Lofrano Filho; 13ª Câmara de Direito Público; j. em 08/05/2024.

[4] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/05/28/congresso-garante-ao-titular-transferir-creditos-de-icms-entre-suas-empresas>. Acesso em: 11/07/2023 às 22:40.

[5] Ref.: TJSP; AI 2130132-77.2024.8.26.0000; Rel. Renato Delbianco; 2ª Câmara de Direito Público; j. em 02/07/2024.

[6] Ref.: TJSP; AI 2038251-19.2024.8.26.0000; Rel. Borelli Thomaz; 13ª Câmara de Direito Público; j. em 22/02/2024.

[7] Ref.: TJSP, MS 1019038-79.2024.8.26.0053, 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de São Paulo/SP, Juiz de Direito Marcelo Sérgio, j. em 22/03/2024, p. em 27/03/2024.

[8] Ref.: TJSP, MS 1005053-91.2024.8.26.0037, 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de São Paulo/SP, Juiz de Direito Marcelo Sérgio, j. em 25/06/2024, p. em 28/06/2024.

[9] Ref.: TJSP, AI 2161082-69.2024.8.26.0000, decisão monocrática Des. Antonio Celso Faria, j. em 24/06/2024

 

  • é advogado, sócio da equipe Tributária do VNP Advogados, professor do MBA da FGV de Planejamento Tributário e Tributação no Comércio Exterior, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pós-graduado em Direito Tributário pelo IBET e MBA em Gestão Empresarial pela FGV.

  • é advogado, sócio da equipe Tributária do VNP Advogados, graduado pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUS/SP) e pós-graduado em Direito Tributário pela PUC/SP.

  • é advogada Sênior no VNP Advogados, graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e MBA em Gestão Tributária pela USP-ESALQ.

    Fonte: Conjur