Apesar de existirem previsões legais autorizando órgãos de persecução a diretamente requisitarem dados cadastrais de usuários a empresas do setor privado, especialmente as que exercem atividades de comunicações e transmissão de dados, como o artigo 17-B da Lei 9.913/98 (incluído pela Lei 12.683/12), artigo 1º, § 2º da Lei 12.830/13, artigo 15 da Lei 12.850/13 e artigo 13-A do Código de Processo Penal (incluído pela Lei 13.344/16), não há uma posição sobre a abrangência desses dispositivos pelo Poder Judiciário.

O tema foi novamente discutido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário 1.314.822/SE, interposto pelo Ministério Público Federal, que teve seu seguimento negado pelo ministro relator Ricardo Lewandowski.

O debate chegou ao STF em maio de 2007, pela Ação Civil Pública nº 0001771-04.2007.4.05.8500, movida pela instituição em desfavor da Anatel e diversas operadoras de telefonia no estado de Sergipe.

Segundo o Ministério Público Federal, as empresas deveriam fornecer, independentemente de decisão judicial prévia, sempre que lhes for requisitado pelo Ministério Público (federal e estadual) e pelas polícias Civil e Federal, os dados cadastrais dos usuários. A obrigação em fornecer essas informações se justificaria pelos artigos 5º, inciso XII, e 129, inciso VI, da Constituição Federal, e artigo 8º, §2º, da Lei Complementar 75/93, bem como por dispositivos similares constantes na Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público). Segundo se sustentou, está abrangida nas atribuições do Ministério Público a expedição de notificações para requisitar tais dados em procedimentos administrativos de sua competência.

Em primeira instância, a Justiça Federal julgou a Ação Civil Pública procedente, garantindo o acesso direto dos órgãos aos dados cadastrais mantidos pelas empresas.

No entanto, a decisão foi reformada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), com o fundamento de que informações cadastrais dos usuários dos serviços de telecomunicações gozam de proteção constitucional à privacidade e qualquer ponderação de interesses constitucionais só pode ser realizada pelo Poder Judiciário, que goza de imparcialidade, pois é órgão alheio ao objeto do processo ou do procedimento em que se busca as informações cadastrais.

Após o recurso especial não ter sido conhecido no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o caso chegou ao Supremo.

A despeito dos argumentos do Ministério Público, é cediço que a intimidade e a privacidade são direitos fundamentais invioláveis, consagrados no artigo 5º, inciso X, da Constituição. Assim como todos os outros direitos fundamentais dispostos na Carta Magna, eles adquirem especial importância na medida em que balizam o poder do Estado, assegurando aos cidadãos direitos e garantias mínimos.

Em que pese a importância do respeito aos direitos fundamentais, não raro eles são restringidos ou até mesmo violados.

Se por um lado a intimidade e a privacidade são direitos fundamentais, por outro o Ministério Público possui a função, igualmente prevista na Constituição, de “expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva”.

Apesar de as funções do Ministério Público e da Polícia Judiciária no contexto da persecução penal, é certo que comportam limitações em decorrência de direitos e garantias fundamentais dos averiguados, não podendo se sustentar uma “carta branca” na demanda por dados. O artigo 129, inciso VI da Constituição assegura ao Ministério Público uma faculdade de agir (“expedir notificações”, “requisitando informações”) e não um direito a um resultado (receber informações e documentos).

Não se pode ignorar que os dados cadastrais são espécies do gênero dados pessoais, que correspondem a todas as informações relacionadas à pessoa natural identificada ou identificável, sobre as quais recai o direito à privacidade e intimidade, conforme disposto nos artigos 2º, inciso I e IV c.c. 5º, inciso I, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Inclusive, a maior parte dos dispositivos legais que disciplinam a requisição de dados cadastrais por parte dos órgãos de persecução penal não dispõem sobre os requisitos mínimos de como esses dados devem ser tratados, tal como a necessidade de existir um procedimento de investigação formalmente instaurado, a tentativa prévia de busca de informações cadastrais por fontes públicas, a limitação a dados cadastrais efetivamente necessários à investigação, a restrição do acesso às informações cadastrais apenas aos agentes que efetivamente atuam na investigação, dentre outras medidas, assim como o Supremo decidiu em relação à transferência do sigilo bancário previsto na Lei Complementar 105/01 (RE 1.055.941/SP).

Não se podem vulnerar direitos, como a intimidade, a vida privada e o sigilo de dados em razão de funções institucionais, sob pena de menoscabo ao princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Como reconheceu o ministro Lewandowski, no RE 1.314.822/SE, é preciso se aplicar a técnica da ponderação de interesses considerando o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, uma vez que a revelação de dados pode mitigar, em abstrato, os direitos fundamentais à vida íntima e à privacidade. Com base nessas circunstâncias jurídico-normativas, não há de se falar em ofensa direta ao artigo 129, inciso VI, do Texto Magno, que versa sobre as funções institucionais do Ministério Público.

Em razão da quantidade de normas que são constantemente criadas para regular a requisição de dados cadastrais diretamente pelos Ministério Público e Polícia Judiciária; a posição que o STF vem adotando de limitar o acesso a dados cadastrais; e, principalmente, o grande número de requisições realizadas; é necessário que esse tema de relevância jurídica coletiva seja objeto de definição, sob a sistemática da repercussão geral, por parte do Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, há pelo menos uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em trâmite no STF discutindo o tema, proposta pela Associação Nacional das Operadoras de Celulares (Acel), em 2017, questionando a constitucionalidade do artigo 13-A do Código de Processo Penal (incluído pela Lei 13.344/16), que trata da possibilidade de o Ministério Público e Polícia Judiciária terem acesso aos dados cadastrais que interessem à apuração de determinados crimes (sequestro, cárcere privado, redução à condição análoga de escravo tráfico de pessoas, extorsão e tráfico de crianças e adolescentes), mediante requisição contendo: (i) nome da autoridade solicitante; (ii) número do inquérito policial; e, (iii) identificação da unidade de polícia judiciária responsável pela investigação.

O julgamento da ADI teve início em julho de 2021 e foi suspenso após pedido de vistas do ministro Nunes Marques. Já votaram os ministros Edson Fachin, relator da ADI, e o ministro aposentado Marco Aurélio Mello.

Segundo argumentou Fachin, o dispositivo questionado pela Acel é constitucional, pois não confere às autoridades amplo poder de requisição e constitui um instrumento necessário à repressão de crimes que atentam contra a liberdade pessoal do indivíduo, não se podendo sustentar que “o cumprimento integral das garantias constitucionais seja empecilho à efetividade da repressão de crimes que configuram graves violações de direitos humanos”.

Em sentido contrário, Marco Aurélio, acatando os argumentos da Acel, reconheceu que a norma atacada contém vícios de constitucionalidade, uma vez que a Constituição dispõe sobre a imprescindibilidade de autorização judicial para afastamento do direito à privacidade.

É certo que a ADI não esgota a discussão sobre a problemática da possibilidade de requisição de dados cadastrais face aos direitos à intimidade e privacidade. Isso tendo em vista que ela trata apenas de um dos diversos dispositivos legais que permitem a requisição de dados cadastrais independentemente de decisão judicial por parte do Ministério Público e Polícia Judiciária.

Não obstante o cenário acima, é certo que a ADI apresentada pela Acel representa um primeiro passo importante na discussão desse tema de tamanha relevância jurídica. Entretanto, é necessário o ajuizamento de ações que questionem a constitucionalidade das demais normas (como o artigo 17-B da Lei 9.913/98, incluído pela Lei 12.683/12, artigo 1º, § 2º da Lei 12.830/13 e artigo 15 da Lei 12.850/13), que autorizam a requisição direta de dados cadastrais pelo Ministério Público e Polícia Judiciária, ou ao menos que se tenha os casos delas advindos sobrestados enquanto o STF não uniformize a questão.

É premente e imperativo que se assegure uma segurança jurídica mínima às empresas que são demandadas e, principalmente, a seus usuários, que de antemão poderão ter ciência dos limites atribuídos à sua intimidade e privacidade, considerando a possibilidade de terem ou não os seus dados cadastrais divulgados sem a intervenção judicial e sem respeitar os critérios necessários para esse compartilhamento.

FILIPE LOVATO BATICH – Advogado associado da prática White Collar & Compliance do Madrona Advogados. Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (FD-USP). Professor universitário.
RHASMYE EL RAFIH – Advogada associada da prática White Collar & Compliance do Madrona Advogados. Mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto (FDRP-USP).
TATIANA MARÃO MIZIARA LOPES SIQUEIRA – Bacharel em Direito pela PUC-SP, é pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogada associada na área de White Collar e Compliance do Madrona Advogados

 

Fonte: Jota