Para aqueles que atuam no contencioso judicial tributário, é absolutamente comum a percepção de que, em última análise, recai somente ao Supremo Tribunal Federal a atribuição jurisdicional de “dar a última palavra” sobre a solução das principais controvérsias tributárias do país.
Em se tratando o Direito Tributário de um direito de natureza eminentemente constitucional, as partes que atuam no processo judicial se acostumaram a aguardar o posicionamento do Pretório Excelso para considerar finalmente resolvida eventual contenda de natureza tributária.
Tanto isso é verdade que, em diversas situações, não obstante a existência de longo posicionamento assente do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria, a controvérsia somente é tida como encerrada após o ulterior pronunciamento do STF, os quais, em não raras situações, acabam se firmando em sentido contraposto ao entendimento do Tribunal da Cidadania.
A esse respeito, podemos, por exemplo, destacar discussões como a não inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins [1], ou, ainda, a não incidência das contribuições previdenciárias devidas pelo empregador sobre o terço constitucional de férias [2] e o salário maternidade [3].
Ocorre, contudo, que esta “cultura processual” que exsurgiu entre os tributaristas, no entendimento deste autor, não caminha ao encontro da melhor interpretação do sistema tributário constitucional e, indevidamente, acaba por mitigar sobremaneira a relevância e definitividade das decisões do STJ acerca de algumas discussões que versam sobre as exações estatais.
Como se sabe, o Sistema Constitucional Tributário pode ser classificado, segundo a doutrina de Paulo de Barros Carvalho [4], como um subsistema da Carta Magna, constituído de normas que dispõem sobre competência, que definem as espécies tributárias e asseguram garantias indispensáveis aos contribuintes, como, por exemplo, a legalidade, a anterioridade e a segurança jurídica.
Nesse sentido, é absolutamente pacífico na academia que o Sistema Constitucional Tributário não cria tributos, apenas outorga competência para que os entes federados o façam por meio de suas próprias leis, desde que observem as disposições encartadas no texto maior [5]. Dessa forma, todas as demais normas que venham a tratar sobre o assunto deverão estar em consonância com as previsões constitucionais que integram esse sistema.
Tal sistema, portanto, enuncia regras de estrutura [6] que norteiam todas as demais normas tributárias, as quais lhe são subordinadas, tendo como função regular, de forma harmoniosa, a ligação entre sujeitos ativos e sujeitos passivos das relações jurídicas tributárias [7].
Portanto, é certo que a Constituição Federal não institui o tributo, mas apenas regula os limites da atuação do legislador, o qual deverá veicular, por meio de lei, regra de conduta obrigatória de pagar quantia em pecúnia [8]. Assim, o fato gerador apenas se juridiciza quando identificados todos os elementos da obrigação tributária previstos em lei [9].
Em outras palavras, o momento da incidência somente se perfectibiliza a partir da existência de previa disposição de lei estabelecendo os elementos mínimos da regra matriz de incidência tributária.
Dentro desse contexto, é possível conceber determinadas situações cuja incidência tributária possa encontrar guarida na competência atribuída pelo Constituinte Originário — ou seja, ser constitucional sob o enfoque da norma de estrutura enunciada pela Carta Magna —, mas, por opção do legislador infraconstitucional, não ser levada a efeito, seja, por exemplo, pela positivação de uma eventual isenção, seja, então, pelo simples fato de o legislador ter optado por não onerar o contribuinte no exercício da sua competência constitucionalmente outorgada (por exemplo, a aplicação de alíquota zero).
Nessas últimas duas hipóteses, portanto, eventual cobrança concreta perpetrada pela autoridade administrativa contra determinado contribuinte, evidentemente, estaria eivada de um vício de legalidade, passível de saneamento pelo STJ, e não de constitucionalidade sujeito ao crivo do STF.
Há de se admitir, portanto, a hipótese de determinada exação estatal ser considerada subsistente sob o viés constitucional pelo STF, porquanto inserida no espectro de competência tributária daquela pessoa jurídica de direito público, mas sem implicar, necessária e objetivamente, a sua imputação como legal. Nessa situação, o vício de ilegalidade eventualmente atestado pelo STJ, na sistemática dos recursos repetitivos, pode assumir caráter autônomo e independente do juízo de constitucionalidade exercido pelo STF na sistemática da repercussão geral.
Ora, é evidente que eventual juízo de inconstitucionalidade, necessariamente, deverá se sobrepor a qualquer possível análise de legalidade realizada no âmbito infraconstitucional. Contudo, a conclusão inversa não é verdadeira! Caso reputada constitucional, ou seja, inserida na norma de outorga de competência ao ente tributante, a exação deverá, então, ser submetida ao crivo do juízo de legalidade cujo órgão julgador máximo do Poder Judiciário é justamente o STJ.
Dessa forma, precedentes firmados pelo STJ, na sistemática dos recursos repetitivos, podem, a depender do caso concreto, subsistir, mantendo sua produção de efeitos, mesmo após firmada posição do STF, em repercussão geral, pela constitucionalidade da exação.
Para tentar tornar concreta a hipótese conjectural proposta acima, vale trazer como exemplo empírico a discussão judicial envolvendo a incidência das contribuições previdenciárias sobre o terço constitucional de férias e as posições firmadas tanto pelo STJ, no Tema n° 479, quanto pelo STF, no Tema n° 985.
Deveras, até o ulterior julgamento pelo STF do Tema n° 985, no qual se reputou constitucional a cobrança, o STJ, há anos, já havia sedimentado sua jurisprudência no sentido de que a exação seria ilegal, antes a sua manifesta infringência ao quanto disposto no artigo 28 da Lei nº 8.212/91.
À luz das premissas trazidas neste trabalho, tem-se, portanto, que a referida situação permitiria concluir que a posição assentada pelo STF, no sentido de reconhecer a subsistência da exação sob o viés constitucional, não infirma, a rigor, a infringência à Lei n° 8.212/91, inserida no âmbito infraconstitucional, conforme declarado pelo STJ.
Para corroborar esse entendimento, vale citar, exemplificativamente, o precedente firmado, em 1°/02/2021, pela 3ª Turma do TRF da 3ª Região/SP, nos autos da Apelação Cível n° 0000311-42.2015.4.03.6144.
Conforme se observa do referido precedente, a 3ª Turma do TRF da 3ª Região/SP proferiu um “juízo negativo de retratação”, justamente com base no entendimento de que o reconhecimento da constitucionalidade da exação pelo STF (Tema n° 985), não se contrapõe, tampouco prejudica, a iterativa jurisprudência do STJ, a qual, há muito, confirmou a ilegalidade desta específica exação federal.
No voto condutor de lavra da juíza convocada Denise Aparecida Avela, acolhido à unanimidade por aquela Turma de Julgamento, restou assentado justamente o seguinte:
“Deste panorama, devemos traçar as seguintes considerações: a incidência da contribuição patronal sobre o terço constitucional de férias fora reputada como legitima pelo a. Supremo Tribunal Federal e, portanto, passou pelo filtro da constitucionalidade da norma. Porém, a mencionada incidência restou infringente às normas legais que tratam do fato imponível tributário. Traz-se, por oportuno, excerto do voto proferido em sede do repetitivo pelo c. Superior Tribunal de Justiça, in verbis: (…)
É importante salientar que, o quanto se delimitou em sede de julgamento proferido pelo c. Superior Tribunal de Justiça não trata da constitucionalidade da incidência da contribuição, mas da sua afronta às normas legais que dispõem sobre o fato imponível tributário.” (destaques do autor)
Portanto, tem-se, a rigor, que a 3ª Turma do TRF da 3ª Região firmou sua posição no sentido de que o reconhecimento da constitucionalidade da incidência da contribuição previdenciária sobre o terço constitucional de férias pelo STF, a rigor, não resulta, automaticamente, na superação da jurisprudência do STJ sedimentada no Tema de Recursos Repetitivos nº 479, pois o reconhecimento da referida constitucionalidade não constitui uma suposta legalidade superveniente.
Em suma, entendeu a 3ª Turma que eventual retratação somente seria cabível, caso sobreviesse novo posicionamento do STJ sobre a matéria no Tema 479, alterando sua jurisprudência em razão do novel posicionamento do STF.
No entendimento deste autor, caminhou bem a 3ª Turma do TRF da 3ª Região ao proferir um juízo negativo de retratação, pois tendo sido fundamentado na ilegalidade da cobrança, por infringência ao artigo 28 da Lei nº 8.212/91, o acórdão originário está amparado na jurisprudência do STJ, sedimentada no Tema n° 479, não configurando a decisão do STF razão triunfal para justificar a sua reforma em juízo de retratação.
Assim, o exemplo empírico trazido acima ilustra a possibilidade de concretização de uma situação na qual o reconhecimento da constitucionalidade da incidência tributária pelo STF, não resulta na superação automática da jurisprudência do STJ, sedimentada nas sistemática dos recursos repetitivos, pois o referido juízo de constitucionalidade não perfectibiliza um juízo de legalidade.
Portanto, é certo que as hipóteses nas quais sobrevenha aparente jurisprudência conflitante entre o STF e o STJ devem ser necessariamente analisadas com o detido rigor técnico, observando-se as especificidades de cada caso, a fim de se combater a natural predisposição do meio jurídico de aceitar o aparente prevalecimento da primeira sobre a segunda.
[1] Antes do julgamento do Recurso Extraordinário n° 574.706, pelo STF, o STJ já havia, inclusive, sumulado a matéria em sentido desfavorável aos contribuintes (Súmulas n° 68 e 94).
[2] O STJ, ao solucionar o Tema n° 479, entendeu pela não incidência tributária, ao passo que o STF, no posterior julgamento do Tema n° 985, posicionou-se pela constitucionalidade da cobrança.
[3] De modo oposto, o STJ, no julgamento do Tema n° 739, entendeu pela incidência tributária, ao passo que o STF, no posterior julgamento do Tema n° 72, posicionou-se pela inconstitucionalidade da cobrança.
[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 31ª. ed. São Paulo: Noeses, 2021. p. 158-160
[5] AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
[6] Segundo Aurora Tomazini de Carvalho: “São as normas de estrutura que possibilitam a dinâmica modificação do sistema jurídico, elas regulam a criação do direito, disciplinando o órgão competente, a matéria e o procedimento próprio para produção de novos enunciados jurídicos. São normas que dispõem sobre novas normas, ou seja, sobre a conduta de crias outras normas”. (Teoria Geral do Direito (o Construtivismo Lógico-Semântico, p. 266-267)
[7] Para Paulo de Barros Carvalho, existem dois tipos de relações jurídicas tributárias: “No conjunto de prescrições normativas que interessam ao Direito Tributário, vamos encontrar os dois tipos de relações: as de substância patrimonial e os vínculos que fazem interromper meros deveres administrativos. As primeiras, previstas no núcleo da norma que define o fenômeno da incidência – regra-matriz – e as outras, circumpostas a ela para tornar possível a operatividade da instituição tributária: são os deveres instrumentais ou formais” (Curso de direito tributário. 31ª. ed. São Paulo: Noeses, 2021. p. 326)
[8] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 478-481.
[9] CARVALHO, Paulo ed Barros. Curso de direito tributário, 13, edição atualizada. São Paulo: Saravia. 2000, p. 267.
Guilherme Lanzellotti Medeiros é advogado tributarista, especialista em Direito Tributários pela Pontifícia Universalidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestrando em Direito Tributário internacional e Comparado pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e membro Associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).
Fonte: ConJur
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