A história da revogação do Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos) faz lembrar o poema de Carlos Drummond de Andrade, cujo primeiro verso diz: “No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho, tinha uma pedra no meio do caminho […]”.
Para os analistas de cultura, a repetição das palavras no poema é intencional e significa os obstáculos no trajeto da vida. [1]
Em outro passo, para parte dos tributaristas, a revogação do incentivo fiscal conhecido como Perse, na forma que se deu, além de ser uma barreira à continuidade do planejamento e compromissos das empresas beneficiárias, é juridicamente indevida. [2]
Quantas pedras existem no meio do caminho dos incentivos fiscais? [3]
É que ao longo da trajetória jurídica e pessoal, as pedras ou os problemas surgem como lembrete do dever de analisar e tomar as melhores decisões diante do que é imposto pelas normas e pelos fatos da vida em sociedade.
Sabe-se que com a pandemia da Covid-19 surgiram perdas em todos os âmbitos. [4] Foi necessário que o governo e demais instituições públicas e privadas adotassem medidas de isolamento e de quarentena, visando a preservar a vida das pessoas.
Consequentemente, o setor de eventos teve grande impacto negativo. Não à toa que, em setembro de 2020, as atividades artísticas, criativas e de espetáculos foram as primeiras a serem listadas, pelo Ministério da Economia, como o setor mais impactado, após a decretação da calamidade pública, conforme a Portaria n° 20.809. [5]
Visando a ajudar o setor de eventos, em 3 de maio de 2021 foi publicada a Lei nº 14.148, a qual instituiu o Perse, com previsão de renegociação de dívidas, bem como a concessão de alíquota zero para os tributos federais (IRPJ/CSLL/PIS/Cofins) no prazo de cinco anos (ou seja, de 2021 até 2027) [6].
Dispõe os artigos 2° e 4° da referida legislação:
“Art. 2º Fica instituído o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), com o objetivo de criar condições para que o setor de eventos possa mitigar as perdas oriundas do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
Art. 4º Ficam reduzidas a 0% (zero por cento) pelo prazo de 60 (sessenta) meses, contado do início da produção de efeitos desta Lei, as alíquotas dos seguintes tributos, incidentes sobre o resultado auferido pelas pessoas jurídicas pertencentes ao setor de eventos […]”
Os benefícios fiscais podem ser concedidos de várias maneiras, incluindo a redução de alíquotas de impostos, a isenção tributária, a concessão de créditos presumidos e a diminuição da base de cálculo.
No âmbito do Perse, observou-se a redução das alíquotas dos tributos federais a zero por um período determinado, destinada às empresas que atenderam aos requisitos estabelecidos. Tal medida gerou efeitos análogos aos da isenção tributária.
A alíquota zero permeia toda a estrutura tributária de forma convencional, sem excluir qualquer crédito tributário. Entretanto, dada sua base nula, a aplicação da regra fundamental da matemática resulta no mesmo desfecho que a isenção tributária na condição de alíquota zero: ausência de valor a ser desembolsado.
Nesse sentido, até o ano de 2027, conforme estipulado pela Lei nº 14.148 de 2021, não incorrem valores referentes aos tributos federais a serem quitados pelas empresas agraciadas pelo programa Perse.
Mudança no meio do caminho
Dessa maneira, o programa emergencial foi instituído por meio de legislação, configurando-se como um benefício fiscal com um prazo de duração de 60 meses. Contudo, no decorrer de sua vigência — ou como aludia Carlos Drummond de Andrade, “no meio do caminho” —, uma medida provisória (MP) sobreveio, alterando as diretrizes estabelecidas e aprovadas pelo legislativo.
A referida MP, de nº 1.202, foi expedida em 29 de dezembro de 2023, versando sobre a revogação do artigo 4º (definidor de prazo) da legislação do Perse.
Este novo dispositivo normativo estipula que os beneficiários do programa retornem a pagar a maior parte dos tributos federais (CSLL, PIS, Cofins) a partir de abril de 2024, e o Imposto de Renda (IRPJ) em janeiro de 2025. [7]
Por outro lado, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista ao “Roda Viva”, em vídeo datado em 23 de janeiro de 2024, na plataforma do YouTube, além de falar acerca de reequilíbrio das contas públicas, afirmou:
“[…] fizeram um acordo em torno do Perse de anos, quantos anos duraria, nós fizemos um acordo de valor, nós dissemos que o Perse tem 20 bilhões (sic), ele pode acabar em um ano, em dois, em cinco, mas ele vai acabar quando ele consumir 20 bilhões. Ele consumiu 17 bilhões no ano passado, portanto, a medida provisória se fez necessária […]” [8]
Rememorando o poema de Drummond, é possível afirmar-se que a MP nº 1.202 surge como “uma pedra no meio do caminho” das empresas enquadradas no programa. Com a revogação, surge a indagação: pode o governo mudar as regras do jogo no meio do caminho? E se sim, a forma da revogação feita é aceitável pela legislação brasileira?
A resposta da primeira pergunta é certa: o governo pode mudar as regras do jogo, sim. Desde que o faça conforme determina a Constituição, a legislação tributária e entendimento vinculantes dos tribunais superiores.
Para responder ao segundo questionamento, faz-se necessário uma análise técnica acerca das seguintes bases: Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.709 e informativo nº 935, do Supremo Tribunal Federal; parágrafo nº 2 do artigo 62 da Constituição (CRFB/88); aplicação do artigo 178 do Código Tributário Nacional (CTN) para a redução de alíquota a zero; Súmula nº 544, do STF; e princípio da segurança jurídica.
Se a resposta do problema da revogação imatura do Perse não for dada pelo Legislativo, a busca da solução irá compor a pasta da crescente judicialização da vida, como escreveu o ministro Luís Roberto Barroso. [9]
A disputa tributária tem grande probabilidade de ter o reconhecimento judicial de continuidade do programa, nos termos da Lei nº 14.148 de 2021. É que a além de toda a base legal supracitada, que advoga a favor das empresas beneficiárias, tem-se aplicação, por analogia, da súmula nº 544, do STF e o princípio da anterioridade tributária (artigo 60, §4º, IV, CRFB/88) como um direito e garantia individual dos contribuintes, por mais que não esteja elencado no artigo 5º da CRFB/88. [10]
Registre-se que a 7ª Vara Cível Federal de São Paulo já se pronunciou sobre o tema, com entendimento de continuidade do programa pelo prazo inicialmente previsto, conforme termos da decisão nos autos de nº 5001270-45.2024.4.03.6100.
Ao considerar que por trás do debate sobre a manutenção do Perse ou sua revogação prematura há um debate político de ideologias, constata-se que talvez o Legislativo não estará disposto a resolver o problema. Ou ainda, as casas do Congresso não irão se indispor com a resolução e deixarão a palavra final com o Poder Judiciário.
Ocorre que o grande passivo do Judiciário são as causas de direito tributário. De modo que esta situação tende a tornar a justiça disfuncional, seja pela ausência de segurança jurídica para os contribuintes, — que necessitam do planejamento tributário —, ou pela demora dos julgamentos que ocasionam obstáculos aos investimentos públicos e não contribuem para o planejamento público orçamentário. Será que vale a pena colocar pedra(s) no meio do caminho dos incentivos fiscais?
[1] POEMA no meio do caminho de Carlos Drummond de Andrade. Revisão por FUKSH, Rebeca. Disponível em <https://www.culturagenial.com/poema-no-meio-do-caminho-de-carlos-drummond-deRebeca Fuks-andrade/>. Acesso em 10 de fev. de 2024.
[2] DIAS, Rodrigo Antonio; PANISSON, Isabella Fochesatto. A ilegal e inconstitucional revogação antecipada do Perse. 8 de fevereiro de 2024. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2024-fev-08/a-ilegal-e-inconstitucional-revogacao-antecipada-do-perse/> Acesso em 10 de fev. de 2024. No mesmo sentido: MOURA, Adriano; NETO, Milton Dotta. A indevida revogação antecipada do Perse: Governo estima que a receita desonerada pelo benefício fiscal totalizou R$ 255 bilhões em 2022. 31 de jan. de 2024. Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-indevida-revogacao-antecipada-do-perse-31012024>. Acesso em 10 de fev. de 2024.
[3] Um caso similar foi o julgamento acerca da revogação prematura do programa de inclusão digital previsto na Lei 11.196/2005, Lei do Bem. A legislação tinha um prazo de vigência até 31 de dezembro de 2018. Contudo, antes do término do programa, a Lei 13.241/2015 aboliu os benefícios fiscais. No julgamento desse assunto, o Tribunal Superior reconheceu que a abolição antecipada do benefício fiscal estipulado pela Lei do Bem violava o mencionado artigo 178 do Código Tributário Nacional. RECURSO ESPECIAL Nº 1.987.675 – SP (2022/0053737-1). Disponível no <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202200537371&dt_publicacao=27/06/2022#:~:text=13.241%2F2015%2C%20ensejou%20para%20todos,ponto%20de%20vista%20do%20relator.>. Acesso em 10 de fev. de 2021.
[4] Organização Pan-Americana da Saúde. Folha informativa sobre COVID-19 Histórico da pandemia de COVID-19. Disponível em <https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19>. Acesso em 09 de fev. de 2024.
[5] BRASIL. Lista os setores da economia mais impactados pela pandemia após a decretação da calamidade pública decorrente do Covid-19. Portaria nº 20.809, de 14 de set. de 2020. Disponível em < https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-20.809-de-14-de-setembro-de-2020-277430324>. Acesso em 10 de fev. 2024.
[6] BRASIL. Dispõe sobre ações emergenciais e temporárias destinadas ao setor de eventos para compensar os efeitos decorrentes das medidas de combate à pandemia da Covid-19; institui o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) e o Programa de Garantia aos Setores Críticos (PGSC); e altera as Leis nos 13.756, de 12 de dezembro de 2018, e 8.212, de 24 de julho de 1991. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14148.htm>. . Acesso em 10 de fev. 2024.
[7] BRASIL. Revoga os benefícios fiscais de que tratam o art. 4º da Lei nº 14.148, de 3 de maio de 2021, e os art. 7º a art. 10 da Lei nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011, desonera parcialmente a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento, revoga a alíquota reduzida da contribuição previdenciária aplicável a determinados Municípios e limita a compensação de créditos decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/mpv/mpv1202.htm>. Acesso em 10 de fev. 2024.
[8] VIVA, Roda. Fernando Haddad expõe conversa com Pacheco e Lira sobre futuro do Perse e desoneração da folha. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?time_continue=422&v=xDXG4gRqYpQ&embeds_referring_euri=https%3A%2F%2Fwww.google.com%2Fsearch%3Fsca_esv%3D60df094e8c3a7fc5%26sxsrf%3DACQVn0-e_7fH5lRbPaFW8OSQQMigx5f02g%3A1708011906146%26q%3DHADDAD%2Brevoga%25C3&source_ve_path=MzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMzY4NDIsMjg2NjY&feature=emb_logo>. Acesso em 10 de fev. 2024.
[9] “ Ao longo dos últimos anos, verificou-se uma crescente judicialização da vida, rótulo que identifica fato de que inúmeras questões de grande repercussão moral, econômica e social passaram a ter sua instância final decisória no Poder Judiciário e, com frequência, no Supremo Tribunal Federal.” (BARROSO, Luís Roberto. Um outro país: transformação no direito, ética e na agenda do Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018. Pág. 39.)
[10] Esta foi uma das conclusões do Ministro Carlos Velloso, no julgamento histórico da disputa tributária contida na ADI nº 939, cujo relator foi Min. Sydney Sanches.
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