I – Introdução: contornos tributários dos kits

Nesta seção do Observatório do TIT analisaremos um assunto que é muito demandado na prática da consultoria tributária, mas que não tem o mesmo destaque no contencioso: trata-se da tributação, para fins de ICMS, dos chamados kits de mercadorias.

A principal consequência tributária, do ponto de vista do ICMS, aplicável aos kits é saber se os itens que o compõem devem ser tributados de maneira conjunta ou segregada. Desse modo, a pergunta é: incide o imposto sobre cada componente do conjunto, de acordo com alíquota e tratamento específicos (por exemplo, sujeição ao regime de substituição tributária, redução de base de cálculo, etc.), ou o tratamento será único? E, em sendo único, surge uma questão adicional: qual será este tratamento?

Para responder a estas questões é preciso analisar o que se convencionou chamar, comercialmente, de kit, à luz da legislação aduaneira destinada à classificação de mercadorias.

Em breves linhas, apenas os kits que, segundo as Notas Explicativas do Sistema Harmonizado (NESH)[1], RGI/SH n. 3 b, possam ser entendidos como mercadorias “apresentadas em sortidos acondicionados para venda a retalho” é que poderão ser classificados em um único código de produto.

E, para tanto, os bens objeto de classificação precisam passar por três regras:

  1. ter em sua composição pelo menos dois elementos/produtos que possam ser classificados em posições diferentes da NCM – daí advém a acepção da expressão “sortido”;
  2. possuir composição de artigos ou produtos apresentados em conjunto, de modo que satisfaçam uma necessidade específica ou atividade determinada; e
  3. passar por acondicionamento, em maneira tal que possa ser vendido ao destinatário sem a necessidade de “reacondicionamento”.

Para esclarecermos o uso das três regras apresentamos o seguinte exemplo: seria considerado como kit um estojo com uma máquina elétrica de cortar o cabelo, uma tesoura e um pente. Isso porque, o conjunto das mercadorias passaria pelas três regras: (i) existência de itens classificados em posições NCM diferentes; (ii) estaria destinado à finalidade profissional estética (por exemplo, o ofício de cabeleireiro); e (iii) estaria pronto para o uso pelo destinatário.

Diferentemente, caso o mesmo profissional compre um kit que contenha um xampu e um condicionador, por exemplo, tal conjunto não passará pelo teste acima, motivo pelo qual cada bem deverá ser tributado separadamente[2].

Esse é o entendimento, inclusive, do órgão de consultoria da Secretaria de Fazenda de São Paulo (Sefaz/SP).  Segundo a Sefaz/SP, o kit não pode ser considerado, para fins tributários, uma mercadoria autônoma, de modo que o acondicionamento dos produtos que o compõem não é suficiente para torná-las um único e novo produto. Além disso, em relação às obrigações acessórias, a consultoria estadual recomenda que, na nota fiscal, deverão ser “indicados nos campos destinados ao detalhamento de produtos e serviços todos os dados das mercadorias que os compõem, para a perfeita indicação de cada uma delas”[3].

Apesar de existir particular interesse da consultoria tributária sobre o tema, como dito, são raros os casos encontrados na ferramenta de “jurisprudência” do Tribunal de Imposto e Taxas (TIT), utilizando os termos “kit” ou “kits”. De todo modo, dois deles nos chamaram a atenção e são objeto do presente artigo. Vejamos.

II – Os casos que versaram sobre kits: AIIM’S n. 4.132.635-0 e 3.041.799-5

O primeiro caso, julgado em agosto de 2021, refere-se ao auto de infração (AIIM) n. 4.132.635-0, lavrado pela Sefaz/SP, para exigir ICMS incidente sobre flores comercializadas em conjuntos formados por cestas, arranjos, kits e coroas.

Basicamente, a controvérsia se dava sobre a aplicabilidade da isenção para produtos hortifrutigranjeiros, prevista no artigo 36, inciso V, do Anexo I, do Regulamento do ICMS (RICMS), sobre as flores comercializadas pelo contribuinte[4].

Na maioria das vezes, o autuado segregava/discriminava as flores dos demais materiais, em sua documentação fiscal, dando-lhes tratamento tributário individualizado — e, com isso, aplicava a isenção aos produtos de floricultura.

Após apresentação de impugnação pelo contribuinte e tendo ela sido julgada improcedente, o particular interpôs recurso voluntário distribuído à 3ª Câmara Julgadora. O caso foi relatado pelo juiz Adolpho Bergamini, que negou provimento ao recurso e manteve a autuação na parte que interessa ao presente artigo.

Segundo o relator, embasando-se em soluções de consulta e na Decisão Normativa CAT n. 16/2009, as flores não poderiam gozar da isenção se “elas são embaladas e/ou conjugadas, originando um novo produto e que acabem por agregar valor econômico à mercadoria”. Ou seja, para excluir tais mercadorias da isenção teríamos dois critérios:

  1. o acondicionamento ou a industrialização das flores;
  2. existência de um “objetivo precípuo” de conferir valor comercial e agregado decorrente de um acondicionamento.

Grosso modo, como as flores não teriam sido apresentadas em sua forma natural e não foram acondicionadas apenas para o transporte, a isenção não seria aplicável. Abaixo, cita-se a posição do relator:

Da análise do que consta no Relatório Circunstanciado, nos demonstrativos e nos DANFEs juntados, embora a Recorrente, em regra, segregue os itens que compõem cada produto vendido (cestas, kits, etc), o que se observa de fato é a comercialização de flores elaboradas e acondicionadas com apresentação comercial (grifo no original).

Portanto, não importaria se o contribuinte desmembrasse, nos documentos fiscais, os elementos que compunham os arranjos e as coroas. Segundo o voto condutor, tributa-se o produto acabado decorrente da reunião das flores com as demais “matérias-primas” (fitas, cestas, espumas, etc.)[5].

O segundo caso que analisamos decorre do AIIM n. 3.041.799-5, em que o contribuinte foi acusado de não recolher ICMS sobre kits de culinária compostos pelas seguintes mercadorias: (i) iogurteria; (ii) bolsa térmica; (iii) conjunto de queijo; (iv) fermentos; (v) potes coloridos; e (vi) um livro de culinária.

Segundo a defesa do autuado, replicada em seu recurso julgado pela 2ª Câmara Julgadora em 2014, o preço do kit estaria concentrado no livro, de modo que o restante das mercadorias seriam “brindes”. E, como o livro, teria direito à imunidade inconstitucional, não haveria que se recolher o tributo.

Tais argumentos, contudo, foram afastados pelo relator, juiz Adolpho Bergamini (o mesmo do 1º caso), que confirmou o entendimento do Fisco paulista de que todas as mercadorias que compunham o kit deveriam ser valoradas por arbitramento. E, a partir disso, se chegaria na base cálculo do imposto incidente sobre cada produto. Eis o seu entendimento transcrito:

(…) a mim não restam dúvidas de que: (i) a Recorrente não comercializa livro de receitas agregados de brindes, mas sim mercadorias agregadas de um brinde – o livro de receitas; (…)

Assim, ao recurso do contribuinte foi negado provimento, de modo que se arbitrou a base do tributo de acordo com cada componente.

Pois bem. Uma vez expostos os dois casos, passemos à nossa conclusão sobre os entendimentos aplicados.

III – Conclusão sobre as controvérsias

Embora, à primeira vista, as decisões possam parecer contraditórias entre si (tanto o contribuinte que separou os itens quanto aquele que os reuniu sob classificação fiscal única foram vencidos), quer nos parecer que tal contradição não se verifica.

No primeiro caso, a solução final adotada foi a de que a isenção não poderia ser aplicada independentemente de os produtos serem vendidos separadamente ou como item único. Isso porque, as flores haviam sido submetidas a processos de industrialização[6] que afastavam sua condição de produtos “em estado natural” (requisito necessário à caracterização da isenção).

Assim, para o deslinde da questão, mostrou-se irrelevante o exame da possibilidade (ou não) de classificar os produtos que compunham o kit sob um único código da NCM ou não.

Claro que, para o presente artigo, teria sido produtivo se o ilustre relator tivesse adentrado o mérito da correção (ou não) da segregação de itens praticada pelo contribuinte autuado, mas realmente tal discussão não teria qualquer relevância para a decisão tomada no julgamento.

No segundo caso, diferentemente, o cerne da discussão envolveu a possibilidade de venda do kit de culinária sob classificação fiscal única — e, consequentemente, sob tratamento tributário unificado.

A conclusão foi a de que cada mercadoria que compunha o kit deveria ser tributada individualmente, o que afastou a imunidade aplicada pelo contribuinte ao conjunto.

Este processo elucida uma das grandes (senão a principal) dificuldades nesse tipo de autuação: como valorar individualmente itens que foram vendidos conjuntamente. Contudo, por mais interessante que tenham sido (e foram) as discussões acerca do arbitramento realizado no caso concreto (inclusive em mais de uma diligência), tal tema não poderá ser analisado no presente artigo.

Retornando ao tema central que nos propomos a analisar, a 2ª Câmara Julgadora do TIT parece ter andado muito bem ao não acatar a venda do kit de culinária como um item único. Em nossa avaliação, o referido kit, embora atenda dois dos requisitos apresentados no presente artigo, não se destina a satisfazer uma necessidade específica ou atividade determinada.

Autores:

Carlos Eduardo de Arruda Navarro[7]

João Vitor Kanufre Xavier da Silveira[8]

Coordenação:

Eurico Marcos Diniz de Santi

Eduardo Perez Salusse

Lina Santin

Dolina Sol Pedroso de Toledo

Kalinka Bravo


[1] As NESH, aprovadas pelo Decreto n. 435/1992 e a atualizadas pela IN RFB n. 1.788/2018, são orientações do Sistema Harmonizado (SH), do qual o Brasil faz parte, que servem como guia para a classificação fiscal de mercadorias.

[2] Resposta à Consulta Tributária 22001/2020, de 11 de agosto de 2020, disponibilizada no site da SEFAZ/SP em 12/08/2020. Disponível em: < https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/RC22001_2020.aspx>. Acesso em 10/02/2022.

[3] Citamos, nesse sentido, a Resposta à Consulta Tributária 22021/2020, de 10 de setembro de 2020, disponibilizada no site da SEFAZ/SP em 11/09/2020. Disponível em: <https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/RC22021_2020.aspx>. Acesso em 10/02/2022.

[4] ANEXO I – ISENÇÕES

(isenções a que se refere o artigo 8º deste regulamento)

Artigo 36 (HORTIFRUTIGRANJEIROS) – Operações com os seguintes produtos em estado natural, exceto quando destinados à industrialização (Convênio ICM-44/75, com alteração dos Convênios ICM-20/76, ICM-7/80, cláusula primeira, ICM-24/85, ICM-30/87, ICMS-68/90 e ICMS-17/93, e Convênio ICMS-124/93, cláusula primeira, V, 2): (Redação dada ao “caput” do artigo, mantidos os seus incisos, pelo Decreto 52.836, de 26-03-2008; DOE 27-03-2008)

(…)
V – funcho, flores e frutas frescas, exceto amêndoas, avelãs, castanhas, nozes, pêras e maçãs;

[5] Aqui não entraremos no mérito da classificação fiscal dos arranjos, cestos, buquês e coroas, pois estamos enfocando a matéria do ponto de vista dos kits.

[6] Importante ressaltar que é muito comum a associação entre existência de processo industrial e classificação conjunta dos bens em um único código da NCM, mas, como se disse anteriormente, o acondicionamento dos bens em uma única embalagem é apenas um dos requisitos impostos pela legislação internacional.

[7] Graduado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Especialista em Direito Tributário pelo FGVlaw. Mestre em Direito Tributário pela FGV Direito SP. Professor de Direito Tributário na FGV Direito SP e IBDT. Sócio do Galvão Villani, Navarro e Zangiácomo Advogados.

[8] Graduado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Tributário pelo FGVlaw. Mestre em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado no Galvão Villani Navarro Zangiácomo Advogados.

 

Fonte: Jota