Precedentes judiciais podem ser constituídos por dois elementos: ratio decidendi [1], cujo teor enuncia os fundamentos determinantes que conduzem à conclusão alcançada, representando a tese extraível da decisão concreta que orientará os casos futuros; e obter dictum, que são argumentos de passagem ou de mero reforço, não essenciais à resolução da controvérsia submetida à apreciação judicial.

A distinção importa porque, em se tratando de precedentes vinculantes [2] (CPC, artigo 927), a orientação que deve ser obrigatoriamente seguida por juízes e tribunais é aquela oriunda do que ficou contido na ratio decidendi [3]. O obter dictum possui apenas caráter persuasivo, sem vincular instâncias inferiores acerca do que enuncia, e não representa o entendimento do tribunal acerca da matéria que veicula [4].

Há precedentes do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e STF (Supremo Tribunal Federal) que possuem o zelo didático de deixar claro que determinada análise se dá a título de obter dictum, algo comum quando os tribunais analisam situações hipotéticas [5] ou temas que apenas tangenciam o mérito, servindo como reforço argumentativo [6]. Porém, nem sempre é assim: há casos em que caberá ao intérprete do precedente delimitar a ratio decidendi e o obter dictum.

A compreensão incorreta do que é um ou outro influencia naquilo que tem conteúdo vinculante e deve, por consequência, ser obrigatoriamente aplicado pelas instâncias inferiores. Exemplo que demonstra a relevância dessa distinção é o Tema nº 796 de Repercussão Geral do STF, objeto deste texto, no qual obter dictum presente no voto condutor do acórdão vem sendo aplicado como se ratio decidendi fosse.

O Tema nº 796 de Repercussão Geral, afetado no âmbito do Recurso Extraordinário nº 796.376, visou a resolver controvérsia jurídica assim delimitada pelo STF [7]: “Alcance da imunidade tributária do ITBI, prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição, sobre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, quando o valor total desses bens excederem o limite do capital social a ser integralizado”.

O STF objetivou determinar o alcance da previsão constitucional de não incidência do ITBI relativa à integralização de capital social por meio de imóveis. Demarcada a questão, o STF julgou o caso e fixou a seguinte tese: “A imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.

 

A decisão do plenário do STF foi por maioria, ficando vencidos os ministros Marco Aurélio (relator), Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. O ministro Alexandre de Moraes foi o redator do acórdão e responsável pela confecção da ementa e do único voto apresentado a favor da tese jurídica vencedora, o qual representa a fonte exclusiva para a compreensão da ratio decidendi do precedente.

Integralização do capital social

Ao concluir que a imunidade se restringe ao limite do capital social a ser integralizado, o STF anunciou a seguinte ratio decidendi: a finalidade da norma se volta ao valor destinado à integralização do capital social, não cabendo interpretação extensiva objetivando alcançar o excesso entre o valor do imóvel incorporado e o limite do capital social a ser integralizado, sob pena de prejuízo aos municípios [8].

Também consta no voto do ministro Alexandre de Moraes um obter dictum relativo a tema que não tem relação direta com a matéria afetada em regime de repercussão geral e que, por isso, sequer foi objeto de deliberação colegiada: a compreensão de que a parte final do artigo 156, § 2º, I, da CF/88, que trata das exceções à regra de não incidência, não se aplica aos casos de integralização de capital social [9].

Na parte final do artigo 156, § 2º, I, da CF/88 há ressalva na qual a imunidade não se aplica: na hipótese de a atividade preponderante do adquirente ser “compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”. O voto condutor apresenta compreensão quanto ao alcance dessa exceção, restringindo-a aos casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.

Porém, a conclusão a respeito do alcance da ressalva contida na parte final do artigo 156, § 2º, I, da CF/88 não integra o processo escolhido como representativo de controvérsia, não foi objeto de afetação pelo STF no âmbito do regime de repercussão geral e não foi posta como objeto de discussão entre os ministros, motivo pelo qual não compõe a ratio decidendi, sendo desprovida de eficácia vinculante.

O STF não decidiu, firmou jurisprudência ou pronunciou precedente vinculante relativo ao alcance da ressalva da parte final do artigo 156, § 2º, I, da CF/88, para saber se ela está restrita unicamente aos casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica ou se também abrange a integralização do capital social. Trata-se de tema abordado em obter dictum no único voto por escrito a favor da tese.

Para fins didáticos, o precedente do Tema nº 796 de Repercussão Geral pode ser assim dividido:

 

Tribunais de justiça aplicam o obter dictum do Tema nº 796 de Repercussão Geral como se vinculante fosse, mesmo diante da ausência de deliberação do STF sobre o tema, o qual foi abordado apenas de passagem no voto subscrito pelo ministro Alexandre de Moraes. Há acórdãos proferidos pelo TJ-CE [10], TJ-GO [11], TJ-RS [12], TJ-BA [13] e TJ-RN [14] aplicando o obter dictum como se a matéria tivesse sido pacificada.

Por outro lado, existem acórdãos do TJ-SC [15], TJ-PR [16], TJ-MG [17] e TJ-SP [18] que explicitam a natureza de obter dictum da questão relativa às ressalvas do artigo 156, § 2º, I, da CF/88 e a ausência de caráter vinculante. No tema, decidiu o TJ-SP: “Impetração fundada em manifestação obter dictum inserida no voto vencedor do RE 796.376/SC (Tema 796 do STF), cujo objeto diz respeito a tema diverso” [19].

A enunciação de teses jurídicas, no contexto da repercussão geral e do recurso especial repetitivo, visa a orientar as instâncias inferiores sobre a questão que foi alvo de padronização decisória pelo tribunal superior. Tal metodologia decorre do modelo de deliberação das cortes de precedentes brasileiras, que adotam o sistema per seriatim [20], com a juntada em série das posições individuais (votos) dos ministros.

Diante da dificuldade de se delimitar a ratio decidendi no contexto de uma deliberação judicial que se dá mediante a apresentação sobreposta de votos individuais, os quais podem abordar a mesma questão sob diferentes aspectos, inclusive apresentando fundamentos distintos ensejadores de igual conclusão, os tribunais superiores fixam teses enunciativas a serem observadas pelas instâncias inferiores.

Todavia, mesmo com a enunciação de tese jurídica que revela a compreensão do tribunal e sintetiza a ratio decidendi do precedente produzido, como ocorreu no Tema nº 796 de Repercussão Geral do STF, as instâncias ordinárias conferem efeito vinculante ao obter dictum, extirpando qualquer possibilidade de amadurecimento do debate sobre o tema, como se a questão já tivesse sido resolvida pelo STF.

Pelo exposto, o alcance das ressalvas da parte final do artigo 156, § 2º, I, da CF/88 foi analisado em obter dictum no voto do ministro Alexandre de Moraes, não possuindo eficácia vinculante, uma vez que não foi objeto de afetação e de debate colegiado pelo STF, motivo pelo qual as instâncias ordinárias ainda precisam debater e amadurecer a questão até que ela seja devidamente apreciada pela Suprema Corte.

 


[1] Segundo Fredie Didier Jr., a “tese jurídica (ratio decidendi) se desprende do caso específico e pode ser aplicada em outras situações concretas que se assemelham àquela em que foi originariamente construída”. (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 443, v. 2).

[2] Enunciado nº 170 do FPPC. As decisões e precedentes previstos nos incisos do caput do art. 927 são vinculantes aos órgãos jurisdicionais a eles submetidos.

[3] Enunciado nº 317 do FPPC. O efeito vinculante do precedente decorre da adoção dos mesmos fundamentos determinantes pela maioria dos membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado.

[4] Daniel Mitidiero ensina que “o que não se oferece como indispensável para sustentação da solução da questão não pode ser considerado como integrante da ratio decidendi e compõe a categoria do obiter dictum – literalmente, dito de passagem, pelo caminho (saying by the way), cujo conteúdo não constitui precedente” (MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 106).

[5] Exemplo de obter dictum no qual houve o tratamento de questão hipotética: STJ, AgInt no REsp nº 2.082.963/PE, Relator: Ministro Herman Benjamin, órgão julgador: 2ª Turma, data do julgamento: 20/2/2024.

[6] Exemplo de obter dictum como reforço argumentativo: STJ, AgRg nos EAREsp nº 2.173.095/PB, Relator: Ministro Raul Araújo, órgão julgador: Corte Especial, data do julgamento: 29/11/2023.

[7] O tema afetado pode ser consultado em https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=796.

[8] Trecho da ratio decidendi extraído do voto condutor: “Revelaria interpretação extensiva a exegese que pretendesse albergar, sob o manto da imunidade, os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, e sim a outro objetivo – como, no caso presente, em que se destina o valor excedente à formação de reserva de capital. […] O que não se admite é que, a pretexto de criar-se uma reserva de capital, pretenda-se imunizar o valor dos imóveis excedente às quotas subscritas, ao arrepio da norma constitucional e em prejuízo ao Fisco municipal. Ainda que o preceito constitucional em apreço tenha por finalidade incentivar a livre iniciativa, estimular o empreendedorismo, promover a capitalização e o desenvolvimento das empresas, não chega ao ponto de imunizar imóvel cuja destinação escapa da finalidade da norma”.

[9] Trecho do obter dictum extraído do voto condutor: “Ou seja, a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte. desse inciso. Assim, o argumento no sentido de que incide a imunidade em relação ao ITBI, sobre o valor dos bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, em realização de capital, excedente ao valor do capital subscrito, não encontra amparo no inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88, pois a ressalva sequer tem relação com a hipótese de integralização de capital”.

[10] TJ-CE, Agravo de instrumento nº 0634205-32.2021.8.06.0000, Relator: Des. Washington Luís Bezerra de Araujo, órgão julgador: 3ª Câmara Direito Público, data do julgamento: 31/01/2022.

[11] TJ-GO, Agravo de instrumento nº 5620501-41.2023.8.09.0151, Relatora: Desa. Juliana Pereira Diniz Prudente, órgão julgador: 8ª Câmara Cível, data do julgamento: 28/10/2023.

[12] TJ-RS, Apelação nº 5082610-43.2021.8.21.0001, Relator: Des. Arminio José Abreu Lima da Rosa, órgão julgador: 21ª Câmara Cível, data do julgamento: 11/12/2023.

[13] TJ-BA, Reexame necessário nº 8009517-11.2019.8.05.0001, Relator: Des. Aldenilson Barbosa dos Santos, órgão julgador: 5ª Câmara Cível, data do julgamento: 14/06/2022.

[14] TJ-RN, Apelação nº 0000835-11.2010.8.20.0129, Relatora: Dra. Martha Danyelle Barbosa, órgão julgador: 3ª Câmara Cível, data do julgamento: 29/07/2023.

[15] Entendendo que a aplicação do obter dictum é “lucubração infecunda”: TJSC, Apelação n° 5019261-60.2023.8.24.0018, Relator: Des. Luiz Fernando Boller, órgão julgador: 1ª Câmara de Direito Público, data do julgamento: 27/02/2024.

[16] TJ-MG, Apelação Cível nº 1.0000.24.089661-3/001, Relator: Des. Versiani Penna, órgão julgador: 19ª Câmara Cível, data do julgamento: 25/04/2024.

[17] TJ-PR, Apelação Cível nº 0042098-05.2021.8.16.0014, Relator: Des. Eduardo Casagrande Sarrão, órgão julgador: 3ª Câmara Cível, data do julgamento: 24.10.2022.

[18] TJ-SP, Apelação nº 1000364-10.2022.8.26.0090, Relator: Des. Eutálio Porto, órgão julgador: 15ª Câmara de Direito Público, data do julgamento: 09/02/2023.

[19]  TJ-SP, Apelação nº 1001821-85.2022.8.26.0152, Relator: Des. Ricardo Chimenti, órgão julgador: 18ª Câmara de Direito Público, data do julgamento: 27/11/2023.

[20] Sobre a deliberação per seriatim, André Rufino do Vale explicita: “Em contraste com o modelo de decisão per curiam, que privilegia a apresentação do resultado da deliberação como “opinião do tribunal” em texto único, o modelo de decisão seriatim se caracteriza pela produção de um agregado das posições individuais de cada membro do colegiado, cujos votos são expostos “em série” em um texto composto — aí está o significado do termo em latim seriatim.” (VALE, Andre Rufino do. É preciso repensar a deliberação no Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2014-fev-01/observatorio-constitucional-preciso-repensar-deliberacao-stf/>. Acesso em: 05 de maio de 2024).

 

Fonte: Conjur