Rodrigo Tomiello da Silva – advogado co-fundador do HTSP Law

José Guilherme Fontes de Azevedo Costa – advogado em tributário da VIBRA Energia

 Paulo Henrique Garcia D’Angioli – advogado em tributário da VIBRA Energia

 

 

Em 2007, o então presidente desta República sofreu dura derrota no Congresso Nacional na tentativa de prorrogar a CPMF (contribuição provisória sobre movimentação financeira)[1] e viu-a ser extinta.

Em 2021, o atual Chefe do Poder Executivo Federal vê a inflação em níveis acima dos esperados, situação que gera um relevante desconforto orçamentário para o ano de 2022[2], e não consegue emplacar seus projetos de lei de reforma tributária estrutural – PLs 3887/20 (CBS[3]) e 2337/21 (IRPJ e CSLL[4]).

Não obstante estarmos diante de dois governos que se notabilizam exatamente por tentar se distanciar diametralmente um do outro, as soluções de ambos a seus específicos problemas apresentados, como tentaremos demonstrar, foram bastante afins.

Em 03/01/2008, foi publicado o Decreto nº 6.339. Por meio dele, o então Presidente da República incrementou – com eficácia imediata – as alíquotas de IOF (imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários) com o declarado propósito de cobrir o rombo orçamentário causado pela perda da CPMF[5].

Em 16/09/2021, o Decreto nº 10.797 foi publicado, e sua finalidade é incrementar temporariamente (20/09 a 31/12/2021) alíquotas do IOF para viabilizar a cobertura orçamentária mister ao custeio de programa de assistência social[6].

Não restam dúvidas de que, em ambos os casos, o Planalto promoveu um incremento de IOF visando a um aumento de arrecadação, geração de receita orçamentária, por meio de um imposto (com receita naturalmente não vinculada – art. 167, IV, da Constituição). A finalidade autodeclarada nas normas, seja no governo atual seja no de 2008, era rigorosamente a mesma.

Os aumentos de IOF deram-se por Decreto (ato exclusivo do Chefe do Poder Executivo Federal) e sem observância a qualquer anterioridade.

Soa estranho, em se tratando de tributo, não é?

Acontece que uma visão apenas do texto constitucional pode nos levar ao entendimento primário de que nessas posturas vícios não há.

Vejamos: a Constituição da República (CRFB) prevê explicitamente, em seus arts. 150, §1º e 153, V c/c §1º, que o IOF pode ser majorado sem observar as regras de anterioridade e, observados limites da lei, suas alíquotas poderão ser fixadas por Decreto.

 

“art. 150

(…)

  • 1º A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I.”

 

“Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

(…)

V – operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários;

(…)

  • 1º É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.”

 

No julgamento da ADI (Ação Declaratória/Direta de Inconstitucionalidade) nº 5.277/DF[7], o Supremo Tribunal Federal (STF) já firmou posição de que não há inconstitucionalidade na delegação legislativa ao Poder Executivo para promover variação da alíquota de tributo, desde que conforme os limites previstos na própria lei.

Restar-nos-ia, nesta empreitada ainda apenas gramatical-formal, cotejar os aumentos contidos nos Decretos com os limites estabelecidos no art. 1º da Lei nº 8.894/94[8] e, ao assim procedermos, notaremos que os aumentos ocorreram dentro dos limites legais.

Em assim sendo, o que nos restaria então a discutir, se ambos os Decretos atuaram nos aparentes contornos da CRFB e da lei?

Para alcançar a imprecisão desses atos normativos secundários, emanados do Palácio do Planalto em 2008 e 2021, é preciso atentar aos fundamentos do incremento de IOF e cotejá-los com algo que não está explicitamente escrito na CRFB.

É do começo que se inicia; a finalidade dos Decretos era uma só: gerar caixa para um dispêndio futuro.

Em 2021, esse escopo foi declarado pelo Ministério da Economia de forma claríssima, portanto sequer poderia ser objeto de contestação (séria, ao menos) em juízo ou fora dele.

As regras de legalidade e de anterioridade previstas na CRFB têm uma razão de ser. É possível escrever longos textos sobre suas origens e propósitos, mas aqui nos permitiremos ser sintéticos: prestam-se a garantir o Estado de Direito e a não surpresa ao contribuinte. São valores nucleares, limitações constitucionais ao poder (rectius, função – quem tem poder é o povo, o Estado só tem funções a desempenhar) de tributar, constitutivos destarte do pacote de direitos de 1ª geração/dimensão de todos os cidadãos.

É verdade que existem normas constitucionais – até originárias (e portanto a salvo de controle segundo a doutrina nacional) – que preveem exceções à legalidade e à anterioridade. Mas, para de fato ser válida uma exceção a tamanho direito, é preciso que referida excepcionalidade venha carregada de alto e imediato componente valorativo-axiológico.

Só será válida a exceção como resultado exegético – mesmo de norma originariamente constitucional – se atender a essa condição: trazer consigo outro valor primário e imediato que viabilize a superação da regra constitucional.

Não se sugere aqui, absolutamente, uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto para os elementos constitucionais que normatizam a exceção. Pede-se tão somente uma interpretação harmônica, baseada nos fundamentos reais e conforme a própria Carta.

Entendemos, mais uma vez em marcha muito direta, que as exceções a regras tributárias tão caras (que constituem cláusulas pétreas, diga-se), só serão válidas quando carregarem em si algum valor maior que a mera arrecadação – isto é, quando trouxerem consigo elementos imediatos e vinculantes de extrafiscalidade – aqui entendida como a conexão direta da tributação à regulação, isto é, a uma política de Estado tendente a implementar valores constitucionais na sociedade.

Não estamos sozinhos nessa visão. O Mestre Luís Eduardo Schoueri[9] vaticina com a habitual precisão: “Destarte, há um PRESSUPOSTO para que o Executivo altere as alíquotas do IOF: razões extrafiscais.”

Entendemos, e esperamos seja dada apenas a necessária visão técnica e apolítica a estas breves linhas, que os Decretos de 2008 e de 2021 padecem de males essencialmente uniformes.

Diante desse diagnóstico, uma paleta de protocolos de cura se apresenta, e aqui uma distinção acessória se mostra auspiciosa: enquanto a majoração de IOF de 2008 tendia à definitividade, a operada em 2021 se autoproclama apenas temporária.

O Decreto de 2008, que promoveu aumento de carga sem autocontenção temporal, foi objeto de controle concentrado de constitucionalidade perante o STF, como se verifica por exemplo nas ADIs 4.004/DF[10] e 4.110/DF[11], cujos resultados foram frustrantes extinções sem apreciação do mérito por perda do objeto, causadas pela alteração das alíquotas no Decreto-base de IOF, Decreto nº 6.306/2007[12].

No caso do Decreto de 2008, a ADI mostrava-se abstratamente um operacional protocolo de solução, com eficácias erga omnes e vinculante. Diante de uma ADI em caso como este, seria aceitável que os demais contribuintes apenas se sentassem e aguardassem – muito embora, como se viu acidentalmente, a extinção por perda de objeto deu-se em razão da natural demora do STF em apreciar instrumentos de controle abstrato de constitucionalidade, mesmo quando aplica o rito de urgência previsto no art. 12 da Lei nº 9.868/99.

Ocorre que, para o Decreto de 2021, a solução pela via de controle concentrado em ADI mostra-se ainda menos eficiente, já que a norma a ser controlada deixará de existir em 01/01/2022 – momento a partir do qual, segundo jurisprudência histórica do STF, escaparia de poder ser objeto de controle concentrado em ADI.

E, ainda segundo essa jurisprudência clássica, talvez não se poderia cogitar de controle concentrado pela via da Arguição pelo descumprimento de preceito fundamental (ADPF – Lei nº 9.882/99), haja vista seu caráter residual (é apta ao controle de norma revogada, mas até 31/12/2021 ainda caberia em tese uma ADI).

Não obstante se tratar de uma norma apenas temporária, caso de fato se detecte a inadequação constitucional aqui defendida, é dever do Judiciário promover a correção punitivo-pedagógica. Hoje surge um IOF temporário com falha na fundamentação de razão constitucional, mas qual será a próxima surpresa? De migalhas em migalhas, o contribuinte vai sendo onerado sem amparo e respeito ao espírito constitucional…

Neste cenário, aos contribuintes afetados pelo Decreto nº 10.797/2021 restam como mais eficazes (quase exigíveis a depender do nível de competitividade nos mercados em que inserem) as opções de agirem em demandas individuais ou coletivas, por meio de órgãos e entidades representativas.

E o tempo é realmente curto, na medida em que a hipótese de incidência do IOF não é a contratação financeira, mas a efetiva disponibilização de capital[13]. É pois dizer: contratos de financiamento já firmados antes de 20/09/2021, mas com entrega efetiva de capital de 20/09 a 31/12/2021, decerto estarão sob a incidência do novo Decreto.

Nesses casos, particularmente, as defesas de contribuintes poderiam dar-se, lastreados em justo receio, por meio de mandado de segurança preventivo (logo, com menor risco sucumbencial).

Como se vê no caso em exame, os Chefes do Poder Executivo de 2008 e 2021, embora dediquem-se a destacar as suas diferenças, em não raros momentos estão muito mais próximos do que distantes um do outro.

[1] https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,senado-derruba-cpmf-e-lula-perde-r-40-bilhoes,95142

[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/09/governo-revisa-inflacao-no-ano-de-62-para-84-e-conta-deve-estrangular-orcamento-de-2022.shtml

[3] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2258196

[4] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2288389

[5] https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governo-poe-iof-no-lugar-de-cpmf-e-anuncia-corte-de-r-20-bi,103512

[6] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-09/publicado-decreto-que-aumenta-iof-para-custear-auxilio-brasil

[7] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4739288

[8] Art. 1º O Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos e Valores Mobiliários será cobrado à alíquota máxima de 1,5% ao dia, sobre o valor das operações de crédito e relativos a títulos e valores mobiliários.
§ 1o  No caso de operações envolvendo contratos derivativos, a alíquota máxima é de 25% (vinte e cinco por cento) sobre o valor da operação.

  • 2o O Poder Executivo, obedecidos os limites máximos fixados neste artigo, poderá alterar as alíquotas tendo em vista os objetivos das políticas monetária e fiscal.

[9] https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6844990930278236160/?commentUrn=urn%3Ali%3Acomment% 3A(activity%3A6844990930278236160%2C6845027645227364352)

[10] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2587569

[11] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2629702

[12] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/D6306compilado.htm

[13] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/aliquota-zero-de-iof-contratacao-versus-disponibilizacao-do-numerario-26042020

 

Fonte: https://tributario.com.br/jgfac19811/iof-extrafiscalidade-anterioridade-e-legalidade-2008-e-2021-tao-distantes-tao-proximos/