Legislativo tem um dever de casa: aprovar uma lei que preveja o valor aduaneiro pela primeira vez no Brasil.
No corrente ano de eleição presidencial, algumas benesses foram distribuídas e, nesse sentido, o Poder Executivo federal resolveu, através do Decreto nº 11.090/2022, alterar o art. 77, inc. II do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009) para excluir do valor aduaneiro, os gastos incorridos no território nacional e destacados do custo de transporte. O mercado reagiu favoravelmente a essa redução da carga tributária na importação, o que é natural.
A princípio, essa é uma discussão que envolveria apenas o serviço de capatazia, que já havia sido pacificada pelo STJ, no ano de 2020, no sentido de tal serviço estaria incluído na composição do valor aduaneiro e integraria a base de cálculo do imposto de importação (Tema nº 1.014). Em 2021, houve, inclusive, tentativa de apreciação da matéria pelo STF (ARE nº 1.298.840), mas a Suprema Corte do país entendeu que o assunto é infraconstitucional, devendo ser mantida a tese do STJ.
A Fazenda Nacional conseguiu ganhar a causa no Poder Judiciário (Tema nº 1.014), mas o Poder Executivo reconheceu posteriormente, via Decreto nº 11.090/2022, o pleito dos contribuintes. Quem está com a razão: o representante (Fazenda Nacional), o representado (Poder Executivo) ou o contribuinte? Quanta confusão!
Na verdade, a modificação promovida pelo Decreto nº 11.090/2022 chama a atenção para uma temática mais profunda e abrangente: o Poder Executivo pode alterar, para cima ou para baixo, a base de cálculo do imposto de importação? É preciso lembrar que desde o advento da Constituição Federal de 1988, é facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas do imposto de importação (CF/88, art. 153, § 1º), o que significa dizer que a determinação da base de cálculo depende sempre de lei em sentido estrito (CF/88, art. 150, I).
À luz da Carta Magna de 1988, não foi recepcionada a parte do art. 21 do CTN que permite o Poder Executivo alterar as bases de cálculo do imposto, a fim de ajustá-lo aos objetivos da política cambial e do comércio exterior. A vontade constitucional é clara: apenas a alíquota pode ser alterada por ato do Poder Executivo, a base de cálculo não.
A partir deste ponto, convido o leitor a procurarmos juntos a lei que fundamenta o valor aduaneiro no Brasil. Primeiro, vamos fazer uma busca no Decreto-lei nº 37/1966, diploma fundamental do direito aduaneiro no Brasil, segundo o qual a base de cálculo do imposto de importação é, quando a alíquota for ad valorem, o valor aduaneiro apurado segundo as normas do art. 7º do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT) (art. 2º, inc. II).
É bastante curioso porque o Decreto-lei nº 37/1966 delega a um tratado multilateral a apuração do valor aduaneiro no Brasil. Apenas essa medida já é suficiente para dizer que o art. 2º, inc. II do Decreto-lei nº 37/1966 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Primeiro, porque é preciso lei em sentido estrito para a determinação da base de cálculo do imposto de importação (CF/88, art. 150, I c/c art. 153, § 1º). Segundo, porque não compete a um tratado multilateral determinar a base de cálculo de um imposto no Brasil. O tratado não tributa! O princípio da legalidade tributária é essencial em qualquer Estado democrático de Direito (no taxation without representation) e, justamente por isso, é possível dizer que o tratado delimita competência tributária de Estados soberanos, mas não pode, de forma alguma, estabelecer a base de cálculo do imposto de importação no Brasil.
Caro leitor, para que seja possível continuarmos nossa busca, precisamos fingir que o art. 2º, inc. II do Decreto-lei nº 37/1966 foi recepcionado pela Constituição de 1988, caso contrário, o jogo terminará. Como somos brasileiros e não desistimos nunca, logo encontramos o Artigo VII do Acordo de Valoração Aduaneira (AVA/GATT), internalizado pelo Decreto nº 1.355/94. Bate uma sensação de alívio que dura pouco tempo. Para nossa surpresa, verificamos que o valor aduaneiro de mercadorias importadas, entendido como valor de transação, precisa ser ajustado de acordo com as disposições do Artigo 8º.
O item 2 do art. 8º prevê que ao elaborar sua legislação, cada membro deverá prever a inclusão ou a exclusão, no valor aduaneiro, no todo ou em parte, dos seguintes elementos: (a) o custo de transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação; (b) os gastos relativos ao carregamento, descarregamento e manuseio, associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação; e (c) o custo do seguro.
Percebemos, portanto, que o art. 2º, inc. II do Decreto-lei nº 37/1966 não define nada sobre a base de cálculo do imposto de importação e remete a um tratado multilateral que também não se intromete na base de cálculo do tributo porque esse é um assunto inerente ao sistema constitucional e/ou tributário dos Estados signatários, razão pela qual determina caber à legislação de cada Membro, a previsão de inclusão ou exclusão de certos elementos no valor aduaneiro. É um verdadeiro efeito pingue-pongue.
Para que o AVA/GATT tenha algum sentido à luz da Constituição de 1988, a expressão “legislação” utilizada no item 2 do art. 8º só pode significar lei em sentido estrito (CF/88, art. 150, I c/c art. 153, § 1º). Não existe outra interpretação ou puxadinho hermenêutico. É simples assim, desde a Magna Carta de 1215, na Inglaterra.
Já cansados, convido o leitor a fazermos uma última busca pela lei que fundamenta o valor aduaneiro no Brasil. Eis que descobrimos que não há lei, infelizmente! O Poder Executivo é quem vem há anos editando decretos ilegais para tratar da base de cálculo do imposto de importação quando a alíquota for ad valorem. O valor aduaneiro como base de cálculo estava previsto no Regulamento Aduaneiro anterior (Decreto nº 4.543/2002, artigos 76 a 83) e consta do atual Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009, artigos 76 a 83), mas não está em lei alguma.
A conclusão, por óbvio, é que os artigos 76 a 83 do Decreto nº 6.759/2009, violam a Constituição Federal de 1988 (art. 150, I c/c art. 153, § 1º), que o art. 2º, inc. II do Decreto-lei nº 37/1966 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, assim como também não foi recepcionada a parte do art. 21 do CTN que permite ao Poder Executivo alterar as bases de cálculo do referido imposto. Esse tema tem reflexos no PIS-importação e na Cofins-importação (art. 7º, inc. I da Lei 10.865/2004), no IPI sobre a importação e no ICMS-importação.
A jurisprudência do STF não costuma reconhecer questionamentos de violação ao princípio da legalidade, mas nesse caso vale o esforço em respeito aos contribuintes que vêm recolhendo tributos aduaneiros cuja base de cálculo está prevista em decreto, não em lei. O Poder Legislativo também tem um dever de casa: aprovar uma lei que preveja o valor aduaneiro pela primeira vez no Brasil. E os contribuintes podem pensar em suas repetições de indébito ou mandados de segurança, mas já sabem que sempre existirá uma modulação de efeitos para o Estado-bebê.
Fonte: JOTA
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