A Constituição (CR/88), em seu art. 155, §2º, X, b, informa que o ICMS “não incidirá (…) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica”.
Caso promovêssemos uma leitura isolada, seríamos forçados a admitir que estaríamos diante de uma imunidade geral nos casos ali previstos. Essa interpretação, porém, nos determinaria concluir que uma operação interna seria onerada pelo ICMS, enquanto uma interestadual seria desonerada.
Recordando as aulas de Matemática, não é difícil provar “por absurdo” que esta não é a leitura mais correta. Um paradigma que nos ilustra o absurdo dessa visão é a regra contida no artigo 152 da mesma Constituição, que veda a “diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino”.
É claro que a própria Constituição pode trazer exceções a si mesma e a questão das alíquotas interestaduais de ICMS diferenciadas a depender de Unidades Federadas (UFs) de origem e destino é um exemplo rico e presente disso. Ocorre que, em nosso ver, diante da mesma hipótese material de incidência, obliterar a tributação em um caso (circulação para outra UF) e a onerar em outro (circulação para a mesma UF), com base apenas na simples diferença de UF de destino, violaria o conceito nuclear Federativo.
Prossigamos… a Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir) nos informa em seu art. 2º, §1º, III, que o ICMS incide “sobre a entrada, no território do Estado destinatário, de petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e de energia elétrica, quando não destinados à comercialização ou à industrialização, decorrentes de operações interestaduais, cabendo o imposto ao Estado onde estiver localizado o adquirente”.
A cláusula primeira, IV, do Convênio CONFAZ nº 110/2007[1], diz que nessas operações as UFs destinatárias podem atribuir ao remetente a condição de sujeito passivo do ICMS por substituição tributária.
Por um lado, aqui fica mais evidente a ideia de que existe um ICMS na operação, e ele será devido à UF de destino do derivado de petróleo. Mas, na fria letra das normas infraconstitucionais, essa tributação existiria apenas quando o destino não é a comercialização nem a industrialização do derivado – venda ao consumidor final, por exemplo.
O fator de complicação está no art. 3º, III, da mesma Lei Kandir, segundo o qual o ICMS não incide sobre “operações interestaduais relativas a energia elétrica e petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, quando destinados à industrialização ou à comercialização”. Essa redação nos levaria à compreensão de que, neste caso, de fato haveria uma imunidade.
Todavia, aqui se traz um aspecto à reflexão, com o cuidado de estudar o ordenamento à luz da Carta, e não o contrário: se a CR/88 estivesse mesmo promovendo uma imunidade, teria suporte constitucional um dispositivo de lei complementar que reduzisse seu espectro apenas a operações destinadas a comercialização ou a industrialização? Só nos parece adequado sustentar a existência de ordem constitucional pela “imunidade” se a ideia fosse dirigida apenas à não tributação pela UF de origem.
E qual seria o racional de a lei complementar, sempre lembrando que ela é que deve obedecer ao previsto na CR/88, impor a tributação imediata ao destino em um caso e a não tributação imediata ao destino noutro?
Tentamos dividir nossa visão acerca deste item.
Na venda interestadual direta ao consumidor, não haverá novas etapas tributáveis, motivo pelo qual se esclarece a necessidade de tributação imediata na operação interestadual, para a UF de destino, na qual ocorrerá o consumo.
Em paralelo, na venda interestadual para um industrial, o derivado funciona como mero insumo para o produto final, cuja saída será integral e devidamente tributada no estado de destino, e o mesmo ocorrerá na venda ao revendedor: a venda subsequente do derivado será integralmente tributada pela UF onde ocorrer o consumo.
Em ambos os casos, pois, a não tributação não reflete desoneração, mas apenas um diferimento. Isto porque, quando se vende a um industrial, não se sabe como ou por quem será tributado o produto final, da mesma forma que, quando se vende a um revendedor, não se sabe qual será a UF na qual ocorrerá o consumo do derivado, e a ela competirá tal tributação.
Sem nos alongarmos em excesso, o que o art. 155, §2º, X, b da CR/88 institui não é uma regra de imunidade; é tão somente uma regra de alteração na sujeição ativa para o ICMS – o tributo será devido integralmente para a UF onde ocorrer o consumo, assim que ela for conhecida.
Explicamos: enquanto a operação interestadual de mercadorias para consumidor em geral é regulada pelo art. 155, §2º, VII e VIII, e se sujeita ao chamado diferencial de alíquota – DIFAL (regra de compartilhamento do tributo entre as UFs de origem e de destino), quando se trata de petróleo e derivados líquidos e gasosos a tributação do ICMS é exclusiva para a UF de consumo.
Reforçam nossas afirmações a jurisprudência caudalosa do STF[2] (inclusive o tema de repercussão geral nº 689[3], quando trata de energia elétrica – esta, nas mesmas condições dos derivados de petróleo) e o art. 155, §4º, I, CR/88 (que trata da possibilidade de um ICMS monofásico, hoje objeto do PLP 16/21).
Historicamente, isso se deve a um mecanismo de equilíbrio federativo segundo o qual cabem às UFs produtoras de petróleo os royalties (art. 20, §1º, CR/88) e, às UFs consumidoras, o ICMS. A sensibilidade dessa balança, diga-se, é tratada com extrema competência na exordial da ADI 4917/RJ[4], por meio da qual o Estado do Rio de Janeiro busca ver declarada a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 12.734/2012, que objetivou modificar critérios de rateio de royalties.
Alcançamos então aqui a primeira conclusão relevante que pretendemos compartilhar: o art. 155, §2º, X, b, da CR/88, não promove nenhum tipo de não incidência; trata-se apenas de uma norma de redistribuição de competência e capacidade tributária ativa para cobrança do ICMS em tais operações.
Em prestígio a regra matriz de incidência tributária: a Constituição abre exceção à regra geral do imposto para instituir uma matriz de incidência em que o elemento subjetivo é alterado desde sua concepção, criando regra matriz própria diversa daquela que institui o tributo na generalidade.
E, ainda que se realize uma interpretação do art. 155, §2º, X, b, da CR/88 à luz do art. 3º, III, da mesma Lei Kandir, entendemos que não se trata de desoneração tributária, mas de mero diferimento – afinal, a UF de consumo fará jus à tributação integral.
Atendendo cuidados metodológicos lastreados em possível leitura dos arts. 2º, §1º, III e 3º, III, da LC nº 87/96, quando muito, seria uma “não incidência” na operação de saída da mercadoria desde o estado de origem, sem que isso represente qualquer exoneração do ICMS, que será integralmente recolhido à UF de consumo.
Não Cumulatividade do ICMS e a regra do art. 155, §2º, II, da CR/88
A não cumulatividade, por excelência, não se confunde com uma tributação apenas sobre valor agregado, mas reflete técnica arrecadatória tendente a também evitar, em tributos plurifásicos, a chamada “tributação em cascata”: créditos pelas aquisições tributadas, débitos pelas alienações tributadas.
A mesma CR/88 que garante o direito a crédito ao edificar a não cumulatividade para o ICMS (art. 155, §2º, I), promove exceção – ao contrário do que fez para o IPI, por exemplo – e informa no seu art. 155, §2º, II, que “a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, (a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes; e (b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores”.
A lógica que se visa a implementar é bastante simples e recorre-se a exemplo objetivo: (i) se a operação de aquisição de mercadoria deu-se de modo não tributado, o contribuinte não poderá tomar créditos pela entrada e deverá promover tributação “cheia” na saída tributada; (ii) se a operação de aquisição de mercadoria foi tributada, mas a alienação ocorrer de modo não tributado, o crédito originalmente tomado deverá ser estornado.
Em ambos os cenários, nota-se, a UF com sujeição ativa receberá integralmente o ICMS que lhe é devido.
Para o ICMS, pois, a CR/88 a priori veda a manutenção de créditos após saída não tributada, mas traz em si uma permissão para que o legislador ordinário a autorize.
A vedação do art. 155, §2º, II, portanto, é uma norma constitucional de eficácia contível: legislação ordinária estadual pode autorizar creditamento de ICMS (e sua manutenção) mesmo naquelas hipóteses.
Mas a sugestão que pretendemos apresentar é que não se aplica a regra de exigência de estorno do crédito pela entrada quando ocorre a exceção da saída interestadual de derivado de petróleo – e isso se dá ora porque (i) compreendemos não haver real imunidade nessa saída (o que fica muito evidente na venda a consumidor e pode soar menos palatável em vendas para industrialização ou comercialização), mas tributação para o destino, ora porque (ii) a norma do art. 155, §2º, II, se insere em um contexto regra-regra, isto é, aplica-se em todas as situações de tributação “normal” em operação interna ou de operação interestadual com outras mercadorias (divisão de ICMS, via DIFAL ou créditos e débitos, entre origem e destino), mas não encontra aplicabilidade na circunstância excepcional de tributação exclusiva no destino, afim aos derivados de petróleo.
Eis nosso raciocínio, de modo bem direto: se um contribuinte apurou crédito contra dada UF, esta UF só poderia inviabilizar (ou permitir, por sua legislação) a manutenção do crédito nas operações em que seria dela a competência para tributação subsequente. Não sendo dela a competência para a tributação subsequente – como vimos ser o caso das operações interestaduais com derivados de petróleo – não lhe é dado aplicar a norma constitucional para vedar o crédito. Assumir essa possibilidade redundaria em permitir à referida UF que recebesse, sem contraprestação do crédito respectivo ao contribuinte, um tributo que deve pertencer exclusiva e integralmente à UF de destino/consumo.
Ausência de interseção entre o art. 155, §2º, X, b, e o art. 155, §2º, II, da CR/88 – Especialmente nas operações para Consumidores Finais
Consoante verificamos, para haver a restrição de creditamento – e, portanto, aplicar-se o art. 155, §2º, II, da CR/88 – é preciso que tenha ocorrido alguma aquisição ou alienação não tributada pela UF que teria em tese competência para a cobrança.
Ocorre que, conforme estudamos inicialmente, a operação interestadual com derivado de petróleo não se enquadra em operação “não tributada”; trata-se, em nossa visão, de operação sujeita a tributação normal, mas exclusivamente pela UF de destino onde ocorre o consumo da mercadoria.
Sendo assim, defendemos, seja por (i) tributação no destino, a inibir a ideia de “não tributação”, seja por (ii) falta de competência da UF de origem para exigir estorno de crédito quando a tributação subsequente jamais lhe competiu, que não existe nenhum cenário de aplicação conjunta dos referidos dispositivos constitucionais
Se observarmos a tipicidade de dada situação jurídica para um deles, certamente haverá atipicidade para o outro.
Existem consequências inescapáveis das afirmativas que edificamos até o presente momento.
Uma delas é a de que, em operações interestaduais com derivado de petróleo, 100% do ICMS será devido à UF de destino, consoante suas alíquotas e bases de cálculo. Qualquer visão diversa conflita com a CR/88, como estatuiu com clareza o STF, entre outros, quando do julgamento da ADI 4171/DF.
Outra é a de que, em operações interestaduais com derivados de petróleo nas quais tenha havido tributação anterior em elo interno com recolhimento de tributo à UF de origem, a UF de origem não pode restringir o crédito do contribuinte que promoveu a alienação interestadual. A uma, porque a saída é tributada (pela UF de destino); a duas, porque permitir o crédito é a única forma de garantir que todo o tributo seja recolhido apenas para o destino, com respeito à não cumulatividade.
Explicamos: em nosso exemplo, houve uma primeira venda interna tributada, então a UF de origem recebeu valor de ICMS; permitir que o contribuinte onerado (ICMS é tributo indireto e não cumulativo) mantenha o crédito no mesmo valor do ICMS por ele indiretamente pago (art. 166, CTN) é a única forma de garantir que a UF de origem não receba tributo que, constitucionalmente, é devido apenas à UF de destino.
Na Prática: Ofensa à regra de tributação exclusiva para uf de destino e Medidas Possíveis
Diversas são as UFs que legislam e/ou autuam seus contribuintes compreendendo que, em operações com derivados de petróleo iniciadas em seus territórios, lhes é devido o valor do ICMS referente aos elos iniciais[5] que ocorreram em seu território, mesmo sabedores de que houve posterior operação interestadual.
Entendemos que essas posturas não guardam compatibilidade com a Constituição da República.
Há casos, distintos daqueles aqui tratados, em que de fato ocorrem entradas tributadas e saídas não tributadas, situações nas quais uma UF pode permitir a manutenção dos créditos de ICMS pelo contribuinte. Nesses casos, porém, existe espaço constitucional a essa decisão e há efeito constitutivo de benefício fiscal, motivo pelo qual se impõe, para devido tratamento, que seja veiculado observando os preceitos da Lei de Responsabilidade Fiscal e o art. 150, §6º, CR/88.
Mas existem UFs que, em operações com as aqui estudadas, legislam permitindo expressamente a manutenção de créditos pelos remetentes de derivados em operações interestaduais ou que, após concessão de diferimento, não exigem a “quebra do diferimento” e o pagamento de ICMS quando da saída interestadual.
Entendemos que essas posturas são importantes em termos de segurança jurídica, mas são totalmente inócuas, pois refletem apenas as previsões constitucionais e não seria possível nenhuma outra ação legítima por parte das UFs de origem.
Por serem desprovidas de conteúdo senão meramente declaratório, entendemos que essa “permissão” pode ser veiculada por qualquer ato normativo / legislação (art. 96, CTN), sendo desnecessários lei formal (art. 150, §6º, CR/88) ou convênio autorizativo (art. 155, § 2.º, XII, g, CR/88 c/c Lei Complementar nº 24/75).
Acaso corretas nossas ponderações, resultaria a viabilidade de se evitar o estorno de créditos / quebra de diferimento junto a UFs de origem em operações interestaduais com derivados de petróleo e, no caso de ter havido esses recolhimentos, seria cogitável buscar-se a restituição dos valores recolhidos a maior nos últimos 5 (cinco) anos.
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