A contabilidade de cooperativas deve atender às especificidades originadas a partir da natureza jurídica própria dessas sociedades. Fazendo um pequeno recorte, mostra-se que, contabilmente, há nove possibilidades de se apresentar o conjunto informacional dos resultados financeiros líquidos decorrentes das operações de sociedades cooperativas ao final de cada período, diferentemente de todos as demais formas de apresentação de resultados para sociedades de qualquer natureza, o que enseja técnica contábil específica a esse modelo societário.

Ou seja, o exercício contábil e os instrumentos de demonstrações contábeis e financeiras para evidenciação de resultados apurados são únicos para as sociedades cooperativas, não se prestando para nenhum outro tipo societário à luz da legislação brasileira, e a técnica contábil a ser aplicada deve estar alinhada a tanto, como por diante se vê.

Definições, resultados, sobras e perdas

O sistema cooperativista de produção tem natureza jurídica própria, fundado originariamente, para fins desta pesquisa, na Lei 5.764, de 1971, recepcionada pela CF de 1988. A Lei 5.764/1971, artigo 4º, aponta que “as cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades com características próprias, entre elas, inc. VII, artigo 4º:

“VII – retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembleia Geral;”

O Código Civil, artigo 1.094, inciso VII, estabelece que a sociedade cooperativa se caracteriza, entre outros, pela distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade;

A Lei 5.764, artigo 21, inciso IV, aduz que o estatuto da cooperativa deverá indicar a forma de devolução das sobras registradas aos cooperados e ou do rateio das perdas apuradas da sociedade. Já no seu artigo 44, letra “c”, inciso II, determina que a Assembleia Geral Ordinária deve deliberar pela destinação das sobras apuradas ou rateio das perdas do exercício.

 

Ou seja, o resultado financeiro do exercício reconhecido como sobras está sempre e integralmente à disposição dos cooperados, seja para destinação direta na proporção da fruição dos serviços de cada um no período, seja por deliberação assemblear ou, ainda, pelo ditame estatutário, uma vez que a assembleia geral é conformada pelo corpo associativo e delibera soberanamente sobre, sendo pelo interesse manifestado eventualmente ou perpetuado no estatuto social da cooperativa, que ela própria aprova, em dado momento.

Convém frisar que está se achegando entre nós o conceito jurídico das “perdas” neste entendimento ora em formação. Consequentemente, tem-se, já, então, sobras e perdas legalmente instituídas e, aqui, evidenciadas.

Tratamento tributário, ato cooperativo e participação de terceiros

A CF/1988 fixa o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, destacando-o e lhe garantindo a especificidade no ambiente jurídico brasileiro:

“Art. 146. Cabe à lei complementar:

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, inclusive em relação aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V”

A Lei 5.764/1971, artigo 79, § único, define os atos cooperativos como sendo aqueles praticados entre as cooperativas e seus cooperados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas, para a consecução dos objetivos sociais, não implicando tais atos como sendo operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.

A Lei 5.764/171, artigos 85, 86 e 111, prevê o exercício dos atos não cooperativos para as cooperativas, que são exatamente aqueles em que há a participação direta de terceiros, não cooperados, na formação da riqueza ou na produção, o que é possível frente a necessidades específicas para consecução dos objetivos sociais de cada entidade, a considerar a equação complexa conformada pelas ofertas e demandas de mercado e limitações de cada sociedade cooperativa.

Significa dizer que as cooperativas, por vezes, poderão ou necessitarão, para garantir o cumprimento de seus objetivos sociais, lançar mão de terceiros, não sócios, nas feituras da sua linha produtiva, de negócios ou de serviços dispostos e atendidos pelos seus sócios, em razão de uma série de fatores circunstanciais. E a lei 5.764/1971 assim permite:

“Art. 85. As cooperativas agropecuárias e de pesca poderão adquirir produtos de não associados, agricultores, pecuaristas ou pescadores, para completar lotes destinados ao cumprimento de contratos ou suprir capacidade ociosa de instalações industriais das cooperativas que as possuem.”

“Art. 86. As cooperativas poderão fornecer bens e serviços a não associados, desde que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e estejam de conformidade com a presente lei.”

“Art. 88. Poderão as cooperativas participar de sociedades não cooperativas para melhor atendimento dos próprios objetivos e de outros de caráter acessório ou complementar.”

Porém, a mesma lei, artigos 87 e 111, ao fixar os atos não cooperativos como tributáveis, determina que haja tratamento contábil, tributário e financeiro diferenciado sobre esses atos praticados e sobre seus resultados em relação ao tratamento deferido aos atos cooperativos justamente por serem atos jurídicos tidos como atos de comércio, como também desenha a doutrina do Direito Cooperativo (BECHO, 2019).

“Art. 87. Os resultados das operações das cooperativas com não associados, mencionados nos artigos 85 e 86, serão levados à conta do “Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social” e serão contabilizados em separado, de molde a permitir cálculo para incidência de tributos.”

“Art. 111. Serão considerados como renda tributável os resultados positivos obtidos pelas cooperativas nas operações de que tratam os artigos 85, 86 e 88 desta Lei. (Lei 5.764/1971).”

O Decreto 9.580/2018 (RIR/2018) aduz:

“Art. 193. As sociedades cooperativas que obedecerem ao disposto na legislação específica não terão incidência do imposto sobre suas atividades econômicas, de proveito comum, sem objetivo de lucro.”

A Instrução Normativa RFB nº 1.700/2017 determina:

“Art. 23. Não incidirá IRPJ sobre as atividades econômicas de proveito comum, sem objetivo de lucro, desenvolvidas por sociedades cooperativas que obedecerem ao disposto na legislação específica.

§1º. As sociedades cooperativas de que trata o caput ficam isentas da CSLL relativamente aos atos cooperativos praticados a partir de 1º de janeiro de 2005.”

Segregação dos atos cooperativos

Consequentemente, a legislação tributária brasileira, harmoniosamente, a partir da carta magna, reconhece que o exercício dos atos cooperativos produz ou, melhor, pode produzir resultados econômicos e financeiros que não são lucros e nem prejuízos, e que esses resultados, se positivos são reconhecidos como sobras e, se negativos, como perdas. E, para eles, há tratamento tributário, fiscal, contábil e financeiro específico, consequentemente.

A ITG 2004 – Entidade Cooperativa, norma da contabilidade que estabelece critérios e procedimentos específicos para mensuração e controle patrimonial para as cooperativas, determina:

“3. Entidade cooperativa é aquela que exerce as atividades na forma de lei específica, por meio de atos cooperativos, que se traduzem na prestação de serviços aos seus associados, sem objetivo de lucro, para obterem em comum melhores resultados para cada um deles em particular.

5. As seguintes expressões usadas nesta interpretação têm os significados: Movimentação econômico-financeira decorrente de ato cooperativo é definida contabilmente como ingressos (receitas por conta de cooperados) e dispêndios (custos e despesas por conta de cooperados) e aquela originada de ato não cooperativo corresponde a receitas, custos e despesas.

Ato cooperativo é aquele de interesse econômico do cooperado conforme definido em legislação própria.”

Ou seja, a norma contábil (ITG 2004) evidencia o ato cooperativo e a ele determina tratamento específico, exigindo-lhe segregação dos atos não cooperativos para fins de reconhecimento de resultados, tratamento tributário e destinações:

“6. A escrituração contábil é obrigatória e deve ser realizada de forma segregada em ato cooperativo e não cooperativo, por atividade, produto ou serviço.”

A perfectibilidade das demonstrações contábeis está na precisão da apresentação das variações patrimoniais e dos fluxos financeiros ocorridos na sociedade cooperativa no período, apresentação essa que deve evidenciar segregadamente os resultados decorrentes dos atos cooperativos e dos atos não cooperativos para fins do seu próprio reconhecimento, do montante tributável e suas destinações, como já dito e embasado.

Possibilidades

 

Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

Por isso, a cooperativa deve apresentar contabilmente os resultados decorrentes dos atos cooperativos, com reconhecimento das sobras, das perdas ou do resultado zerado, o que equivale para os resultados decorrentes dos atos não cooperativos, como lucros, prejuízos ou resultado zerado, ao final do exercício, no encerramento do balanço.

Portanto, são três as possibilidades de resultados líquidos na mensuração para os resultados auferidos pela sociedade cooperativa, decorrentes de cada ato jurídico por ela praticado, frisando-se os juridicamente viáveis: o ato cooperativo e o ato não cooperativo.

Dos atos cooperativos, podem ser evidenciados como resultados apurados no final do exercício: sobras, perdas ou resultado zero, decorrentes do cálculo da diferença obtida entre os montantes de ingressos e dispêndios.

E dos atos não cooperativos, lucros, prejuízos ou resultado zero, decorrentes do cálculo da diferença obtida entre os montantes das receitas, custos e despesas.

Por conta disso, o quadro demonstrativo contábil poderá ser evidenciado das seguintes formas, já deduzidas as destinações compulsórias e estatutárias, à exceção do resultado líquido decorrente dos atos não cooperativos, que devem ser integralmente destinados ao Fates/Rates nos termos da lei.

 

1. Primeira hipótese: Resultados positivos dos atos cooperativos e dos atos não cooperativos.

(Sobras e Lucros).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 10.000,00 R$ 5.000,00 R$ 15.000,00

 

2. Segunda hipótese: Resultado positivo dos atos cooperativos e negativo dos atos não cooperativos.

(Sobras e Prejuízos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 10.000,00 (R$ 5.000,00) R$ 5.000,00

 

3. Terceira hipótese: Resultado positivo dos atos cooperativos e Resultado zero dos atos não cooperativos.

(Sobras e Resultado zero decorrente dos Atos não Cooperativos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 10.000,00 R$ 0,00 R$ 10.000,00

 

4. Quarta hipótese: Resultado negativo dos atos cooperativos e positivo dos atos não cooperativos.

(Perdas e Lucros).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO  (R$ 10.000,00) R$ 5.000,00 (R$ 5.000,00)

 

5. Quinta hipótese: Resultado negativo dos atos cooperativos e negativo dos atos não cooperativos.

(Perdas e Prejuízos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO (R$ 10.000,00) (R$ 10.000,00) (R$ 20.000,00)

 

6. Sexta hipótese: Resultado negativo dos atos cooperativos e Resultado zero dos atos não cooperativos

(Perdas e Resultado zero decorrente dos Atos não Cooperativos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO (R$ 10.000,00) R$ 0,00 (R$ 10.000,00)

 

7. Sétima hipótese: Resultado zero decorrente dos atos cooperativos e positivo dos atos não cooperativos

(Resultado zero decorrente dos Atos Cooperativos e Lucros).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 0,00 R$ 5.000,00 R$ 5.000,00

 

8. Oitava hipótese: Resultado zero dos atos cooperativos e negativo dos atos não cooperativos

(Resultado zero decorrente dos Atos Cooperativos e Prejuízos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 0,00 (R$ 5.000,00) (R$ 5.000,00)

 

9. Nona hipótese: Resultado zero dos atos cooperativos e zero dos atos não cooperativos

(Resultado zero decorrente dos Atos Cooperativos e zero decorrente dos Atos não Cooperativos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 0,00 R$ 0,00 R$ 0.000,00

Conclusões

Tecnicamente, a adequada apresentação das demonstrações contábeis das sociedades cooperativas em cada exercício demanda o reconhecimento de resultados segregados pelos atos jurídicos por ela praticada com seus sócios e com terceiros, atos cooperativos e atos não cooperativos, respectivamente, em cumprimento ao cabedal legal e normativo incidente e aplicável sobre o sistema cooperativista de produção, negócios e serviços.

Para tanto, a contabilização dos atos jurídicos praticados pelas cooperativas exige performance técnica específica, prevista e orquestrada pelo Direito Cooperativo e Tributário, em especial.

Os resultados devem ser evidenciados segregadamente como dito, porém lado a lado, simultaneamente para que as suas destinações ocorram também assim no encerramento do balanço em cada exercício, não sendo viável acúmulos de resultados para exercícios futuros, diferentemente do que ocorre em outros tipos societários.

Dada a especificidade, quando se observa o conjunto formado por resultados originariamente distintos entre si, decorrentes dos atos cooperativos e dos atos não cooperativos, a contabilidade pode apresentar nove (09) hipóteses de resultados no conjunto a demonstrar, em razão das possibilidades dos resultados diferentes sendo apresentados simultaneamente no encerramento do balanço.

Dos resultados dos atos cooperativos, é possível evidenciar sobras, perdas ou resultado zero. Dos resultados decorrentes dos atos não cooperativos, lucros, prejuízos ou resultado zero.

Portanto, o quadro resumo com os resultados, conjuntamente dados, simultâneos e possíveis de ocorrer viabilizam a possibilidade de apresentação de nove (09) demonstrativos diferentes a saber:

Quadro Resultados dos Atos Cooperativos Resultados dos Atos Não Cooperativos
1 Sobra e Lucro
2 Sobra e Prejuízo
3 Sobra e

 

Resultados do Ato não Cooperativo: zero
4 Perda e Lucro
5 Perda e Prejuízo
6 Perda  

e

Resultados do Ato não Cooperativo: zero
7 Resultados do Ato Cooperativo: zero e Lucro
8 Resultados do Ato Cooperativo: zero e Prejuízo
9 Resultados do Ato Cooperativo: zero e

 

Resultados do Ato não Cooperativo: zero

Como dito inicialmente, o exercício contábil necessário, com os demonstrativos de resultados econômico-financeiros apurados aplicáveis às sociedades cooperativas são específicos, ímpares, em nada se confundindo com outros destinados e ou utilizáveis para outros tipos societários, de acordo com a legislação, latu sensu, brasileira.

Se, por um lado, fica evidente que o aproveitamento do molde de práticas, técnicas e demonstrações contábeis exigíveis para controlar o patrimônio de cooperativas, em plenitude, não é possível para utilização em outro modelo societário, por outro, na contramão, as sociedades cooperativas também não podem se aproveitar plenamente de modelos outros que não os próprios.

O reconhecimento da unicidade modelar contábil, seja na aplicação da técnica ou na exposição de resultados, está dado no momento em que se vê o fato de que somente sociedades cooperativas podem e devem declarar e apresentar nove (09) retratos possíveis com seus resultados financeiros em cada período.

 


Referências

BRASILConstituição Federal de 1988.

_____. Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971.

_____. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

_____. Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018.

_____. Instrução Normativa RFB nº 1.700, de 14 de março de 2017.

_____. ITG 2004 – Entidade Cooperativa – Normas Brasileiras de Contabilidade – Conselho Federal de Contabilidade – 29 de novembro de 2017.

BECHO; Renato Lopes. Tributação das Cooperativas. 4ª Edição. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

 

 

 

  • é advogado, tributarista, conselheiro do Carf (2016-2018) e superintendente do Sistema OCB-RJ.

  • é contador, especialista em cooperativismo e em administração, mestre, professor de graduação e pós-graduação, pesquisador, consultor e assessor tributário, contábil e de gestão de sociedades cooperativas.