A 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou ontem um segundo recurso da Fazenda Nacional para tentar manter a cobrança de Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL em um caso de amortização de ágio da empresa de produtos médicos Cremer. A decisão foi unânime para rejeitar os embargos de declaração apresentados e manter julgamento anterior de setembro de 2023 que afastou a tributação. O caso é o primeiro sobre ágio julgado pelo STJ e envolve uma operação societária da Cremer feita em 2004. Segundo informações nos autos, foram pagos R$ 87 milhões na época e a empresa conseguiu amortizar ágio de R$ 60 milhões em cinco anos. Na visão dos ministros, não há problema em abater o sobrepreço no IRPJ e CSLL. Já a Fazenda alega que a negociação carece de “expectativa de rentabilidade futura” e que não há como amortizar o ágio quando há uso de uma empresa veículo. O julgamento dos embargos começou em fevereiro. Na ocasião, o relator, o ministro Gurgel de Faria, votou a favor do contribuinte. A análise foi interrompida por pedido de vista do ministro Sérgio Kukina, que ontem acompanhou integralmente o relator (REsp 2026473). Para Kukina, a Fazenda tentava mudar o que foi decidido em setembro no ano passado, o que não é possível por meio de embargos de declaração. “Não se descortina qualquer traço de omissão, contradição ou obscuridade no arcabouço fundamentatório adotado”, disse Kukina, na sessão. “O que se verifica é um indisfarçável propósito da Fazenda embargante de alcançar o rejulgamento do mérito recursal, já decidido em seu desfavor.” No julgamento em setembro de 2023, Gurgel de Faria, também acompanhado por unanimidade, entendeu que a incorporação entre investidor e investida efetivamente aconteceu, o que permite a dedutibilidade do ágio. E que a Receita Federal não pode, alegando não ver propósito negocial nas operações, impedir a dedução do ágio quando ele é interno ou materializado via empresa veículo. No caso, a Cremer tentava afastar a cobrança de IRPJ e CSLL decorrente do cancelamento do uso de ágio para amortização na apuração do lucro real, nos exercícios seguintes à incorporação da Cremerpar, em 2004. A negociação que gerou o ágio foi a compra do controle da Cremer pelo Merryl Linch. A operação foi realizada em três etapas. Primeiro, os controladores da Cremer formaram a Cremerpar para reunir suas participações. Na sequência, com aporte do Merryl Linch, compraram as ações dos minoritários. A terceira etapa foi a aquisição do controle da Cremer pelo Merryl Linch. Para o advogado Guilherme Pereira das Neves, sócio Neves & Battendieri Advogados, que representou a Cremer, a decisão de hoje é um “precedente importante”, pois legitima investimentos estrangeiros no Brasil. “A criação de empresa veículo confere segurança maior para bons investimentos no país”, diz. Segundo ele, os ministros levaram em consideração que a aquisição foi feita por empresa no exterior, entre partes não relacionadas. Ele pondera, contudo, que como não foi julgado em recurso repetitivo, não se aplica para outros casos concretos e ainda há muita discussão no STJ e no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) para acontecer. “É um precedente firme a nosso favor, mas é preciso cautela, não é uma carta em branco.” Jorge F. Lopes, sócio do Pinheiro Neto Advogados, diz que a Fazenda usou argumento semelhante em outros casos. “Quando ocorreu a incorporação, a alegação do Fisco foi de que não teriam sido cumpridos os requisitos legais para a amortização, mas não existe vedação para situações de ágio interno antes da reforma da lei, em 2014”, afirma. “A mera existência de empresa veículo não prejudica o direito de amortização do ágio”, completa, citando a lei nº 12.973. Ele também diz que as decisões do Carf têm oscilado nos últimos anos, com decisões contra e favor às empresas. Para o professor de direito tributário da Universidade de São Paulo (USP) André Mendes Moreira, sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, havia dúvida se o Judiciário iria aceitar a amortização no período anterior à 2014, com a nova legislação. “A interpretação dos contribuintes, acatada pelo ministro Gurgel de Faria, é de que não havia vedação legal, desde que a operação seja legítima e realizada a valores de mercado.” Moreira também acrescenta que no caso de empresas estrangeiras, a constituição de uma empresa veículo ou holding é o requisito e única forma para aproveitar a amortização do ágio. “A legislação permite que o ágio seja compensado ao longo de cinco anos, desde que ocorra um evento societário. A empresa veículo é necessária para que o estrangeiro seja tratado com isonomia em relação às empresas nacionais. Do contrário, só o empresário nacional poderia se valer do aproveitamento do ágio”, conclui. A discussão, segundo advogados, não teria como ser levada à 1ª Seção pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), por não haver paradigma na 2ª Turma. Procurada, a PGFN não deu retorno até o fechamento da edição. A Cremer, por meio de nota, afirma que o STJ “concluiu pela viabilidade da utilização de empresa veículo e que o voto do relator tratou de um efetivo investimento por empresa estrangeira e que a utilização de holding tem fundamento na legislação”. Também por nota, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) diz que “é preciso ressaltar que o entendimento da 1ª Turma não é um salvo conduto para dedução de ágio nas operações intragrupo”. Isso porque, no precedente, afirma, “não houve reexame de fatos; adotou-se as premissas fáticas encampadas TRF4, no sentido de que a operação não foi artificial”. A Fazenda Nacional, acrescenta o órgão na nota, entende, contudo, que as operações realizadas entre partes relacionadas não podem dar margem à dedução de ágio justamente por não haver um terceiro independente que faça a aquisição, pagando o sobrepreço que materializa o ágio. Sem a presença de um terceiro independente, diz, abre-se margem para que ocorram operações artificiais, que resultem em aproveitamento indevido do benefício fiscal. Assim, finaliza, “partindo da tese firmada pela 1ª Turma, no sentido de que a análise da possibilidade de dedução do ágio não pode ser feita à luz dos aspectos meramente formais da norma, devendo ser levado em conta os eventos reais e econômicos atrelados à operação que o ensejou, o resultado poderia ser totalmente diverso, isto é, favorável à Fazenda Nacional, tivesse caso o acórdão recorrido analisado o caso sob esta perspectiva”.

Fonte: Valor