No estado de São Paulo, é comum verificar situações em que um fornecedor tem sua inscrição estadual declarada “nula”, impactando todas as notas fiscais por ele emitidas, que são consideradas inidôneas (mesmo para as operações realizadas antes da declaração da “nulidade” de seu cadastro junto ao fisco estadual).

Em razão da inidoneidade dos documentos fiscais, os contribuintes adquirentes ficam diante da delicada situação de ter de demonstrar sua boa-fé, pois, se isso não for feito, o fisco de São Paulo irá glosar os créditos do Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias (ICMS) que seriam apropriáveis pelas aquisições realizadas.

Até por isso que esse tema foi objeto de tantos estudos deste Observatório TIT-SP, no âmbito das pesquisas do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas (NEF-FGV)[1].

Contudo, apesar de se tratar de uma temática que é muito debatida, analisar-se-á o tema por duas ópticas que foram muito pouco exploradas até o momento, quais sejam (i) se o contribuinte que demonstra a efetividade de parte das operações autuadas pode se valer da “tese da boa-fé”; e (ii) se a “tese da boa-fé” pode ser aplicada a questões diversas àquela de creditamento indevido por recebimento de mercadoria acompanhada de nota fiscal inidônea. É o que se passa a analisar de acordo com um recente julgado da Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT-SP).

Em 6 de novembro de 2015, a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (Sefaz/SP) lavrou o Auto de Infração e Imposição de Multa 4.061.688-5, tendo consignado, em razão de a Sefaz/SP ter declarado nula a inscrição estadual do fornecedor do contribuinte autuado, a cobrança relativa:

(i) ao creditamento supostamente indevido do ICMS em função do pretenso recebimento de mercadorias, no período de 28.07.2011 a 24.01.2012, que estariam acompanhadas de 12 notas fiscais que foram declaradas como sendo inidôneas pelo fisco (item 1 do AIIM); e

(ii) ao ICMS relativo ao recebimento e à estocagem, em 28.07.2011, de mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal, visto que a nota fiscal que acompanharia a mercadoria seria inidônea (item 2 do AIIM)

Em 14.09.2016, a 12ª Câmara Julgadora do TIT-SP, por maioria de votos, julgou parcialmente procedente o Recurso Ordinário interposto pelo contribuinte por compreender que (i) teria havido a demonstração da boa-fé do autuado para nove notas fiscais autuadas, mantendo-se a cobrança para os três documentos fiscais que não teriam tido sua boa-fé demonstrada (cancelamento parcial do Item 1 do AIIM), e (ii) em razão da demonstração da boa-fé do contribuinte, a cobrança do imposto também deveria ser cancelada (cancelamento total do Item 2 do AIIM).

Isso, porque, de acordo com o que ponderou o Juiz prolator do Voto Vencedor, Dr. Rodrigo Rodrigues Leite Vieira:

(i) o contribuinte teria realizado consultas no Sintegra no período de 14.07.2011 a 22.11.2011, além de que teria apresentado Comprovante de Inscrição e Situação Cadastral da Receita Federal do Brasil de 14.07.2011 e Certidão Negativa de Débitos de 23.05.2012, de modo que teria havido atuação diligente do autuado no período objeto do lançamento;

(iio contribuinte teria recebido efetivamente as mercadorias objeto da autuação, visto que a própria Autoridade Fiscal teria reconhecido tal fato ao consignar a cobrança de multa de 35% sobre o valor da operação em razão “de entrada de mercadoria no estabelecimento […] acompanhado de documento que não atenda às condições” legais, de modo que inexistiria dúvidas quanto à efetividade das operações; e

(iiio contribuinte teria apresentado comprovantes de pagamento das operações autuadas, o que teria sido reconhecido pela Autoridade Fiscal e, posteriormente, pela Representação Fiscal em contrarrazões que os comprovantes possuiriam valores iguais àqueles destacados nas notas fiscais inidôneas e, assim, haveria a efetiva comprovação do pagamento de 9 das 12 notas fiscais autuadas (item 1) e também da nota fiscal autuada pelo recebimento de mercadoria supostamente acompanhada de documento inidôneo (item 2).

Inconformada, a Representação Fiscal interpôs Recurso Especial alegando que (i) a “tese da boa-fé” só seria aplicável se o contribuinte tivesse apresentado prova de pagamento de todas as 12 operações autuadas, o que não ocorreu, visto que foram apresentados documentos relativos a 9 operações e, por isso, a autuação do Item 1 do AIIM deveria ser mantida, e (ii) a “tese da boa-fé” seria inaplicável ao caso de recebimento de mercadoria desacompanhada de documento fiscal hábil e, por isso, deveria ser mantida a cobrança do Item 2 do AIIM.

A matéria foi levada à Câmara Superior do TIT-SP e, em 3.4.2024, foi negado provimento ao apelo fazendário.

Isso, porque, quanto ao Item 1 do AIIM, no entendimento do Juiz Relator (e prolator do Voto Vencedor), Dr. Edison Aurélio Corazza, “não vislumbro esse requisito [de que a boa-fé deve ser comprovada para todas as operações] na Súmula 509 do STJ ou em qualquer dos julgados do Judiciário que levaram sua formalização, ao contrário, a boa-fé é analisada em virtude do negócio jurídico de compra e venda e não ao conjunto de operações no período”.

E, em segundo lugar, quanto ao Item 2 do AIIM, porque “esta Câmara Especial já tem se manifestado que o entendimento consagrado pelo Superior Tribunal de Justiça através da Súmula 509 não se limita aos casos únicos onde se discute o crédito de ICMS, apanhando todas as situações em que um dos polos da relação comercial se apresenta com[o] inidôneo com as consequências daí decorrentes”.

O posicionamento do Juiz Relator foi acompanhado por (i) Juliano Di Pietro, (ii) Carlos Afonso Della Monica, (iii) Carlos Américo Domeneghetti Badia, (iv) Galderise Fernandes Teles, (v) Paulo Schmidt Pimentel, (vi) Maria Alice Formigoni Smolarsky, (vii) Fábio Henrique Bordini Cruz, (viii) Klayton Munehiro Furuguem, e (ix) Argos Campos Ribeiro Simões (Presidente).

O entendimento manifestado pela maioria da Câmara Superior se mostra coerente e acertado, visto que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando do julgamento do Recurso Especial 1.148.444 (julgado pela sistemática dos recursos repetitivos), disciplinou que “[a] responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção da regularidade do alienante”, não havendo que se falar em demonstração da boa-fé para todas as operações.

E o entendimento também é coerente e acertado no que se refere à aplicabilidade da “tese da boa-fé” ao caso de recebimento de mercadoria desacompanhada de documento fiscal hábil. Explica-se.

Sabe-se que as decisões judiciais (dentre elas, os posicionamentos firmados pelo STJ em sede de recursos repetitivos e as Súmulas da Corte Superior) são normas jurídicas e, por isso, estão sujeitas a serem interpretadas para serem aplicadas ao caso concreto (subsunção do fato à norma).

E em se tratando de uma norma jurídica (integrante do rol de “legislação tributária”), poder-se-ia afirmar que ela deveria ser interpretada literalmente/restritivamente, por força do artigo 111 do Código Tributário Nacional (CTN).

Contudo, o mencionado artigo é expresso ao afirmar que as normas jurídicas devem ser interpretadas de maneira literal quando forem referentes a (i) suspensão ou exclusão do crédito tributário; (ii) outorga de isenção; ou (iii) dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.

Ocorre que os precedentes do STJ não se adequam às hipóteses previstas no artigo 111 do CTN, visto que o citado REsp e a mencionada Súmula não tratam de suspensão ou exclusão do crédito tributário, nem de outorga de isenção (situações de concomitância ou posteriores à incidência da norma jurídica que permite a cobrança), tampouco de dispensa de cumprimento de obrigação acessória (situação desvinculada da incidência da norma que permite a cobrança), mas, sim, de hipótese de não ocorrência do fato jurídico tributário, que autorizaria a cobrança via glosa de crédito de ICMS (ou seja, hipótese anterior à incidência da norma).

Justamente por isso que a interpretação da “tese da boa-fé” não pode ser restritiva. Muito pelo contrário. A mencionada tese deve ser aplicada analogicamente a situações jurídicas semelhantes que permitem tal conclusão. Isso é o que determina expressamente o inciso I do artigo 108 do Código Tributário Nacional.

Por conta disso, o entendimento manifestado pela maioria da Câmara Superior se mostra coerente e acertado, tanto com relação aos precedentes do STJ quanto com as regras interpretativas das normas jurídicas que foram fixadas no CTN, razão pela qual a Câmara Superior do TIT-SP agiu bem em julgar o AIIM 4.061.688-5 de maneira parcialmente favorável ao contribuinte.

Autoria:

Bruno Romano – Pesquisador (NEF-FGV/SP). Mestre em Direito Tributário (IBET). Especialista em Direito Tributário (IBDT). Professor Seminarista e Conferencista de Direito Tributário (IBET-SP). Professor Convidado (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Colunista Sênior (Escola Brasileira de Tributos). Bacharel em Direito (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Advogado

Michelle Cristina Bispo Romano – Pesquisadora (NEF-FGV/SP). Especialista em Direito Tributário (IBET). Colunista Sênior (Escola Brasileira de Tributos). Bacharela em Direito (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Advogada

Coordenação:

Eurico Marcos Diniz de Santi
Eduardo Perez Salusse
Kalinka Bravo
Lina Santin


[1] (i) Artigo de Eurico Marcos Diniz de Santi, Eduardo Perez Salusse, Lina Santin, Dolina Sol Pedroso de Toledo, Vanessa Rodrigues Domene, Frederico de Mello e Faro da Cunha, Jéssica Fernandes Freirias, Pedro Demartini, Otto Sobral, Janaína Mesquisa Lourenço, e Thaís Silveira Takahashi, publicado em 30.01.2018;

(iiAnálise de Vanessa Rodrigues Domene e Thaís Silveira Takahashi, de 21.02.2019, sobre as decisões conflitantes exaradas pelo Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (“TIT-SP”) que obrigam a judicialização do tema;

(iiiEstudo de Daniela Cristina Ismael Floriano, de 19.09.2019, ao tratar de uma possível “responsabilidade objetiva” do adquirente (irrelevância da boa-fé);

(iv) Texto de Dolina Sol Pedroso de Toledo, de 03.10.2019, sobre a presunção de interesse comum do adquirente de mercadorias vendidas por estabelecimento declarado inidôneo;

(v) Artigo de Edison Aurélio Corazza, de 28.11.2019, sobre a necessidade de comprovar que o vendedor estava com sua situação cadastral regular no momento da ocorrência da operação objeto da autuação para permitir a manutenção do crédito de ICMS;

(viTexto de César Eduardo Temer Zalaf, de 12.12.2019, que tratou sobre a possibilidade (ou não) de a Câmara Superior do TIT-SP analisar a boa-fé (e o preenchimento dos requisitos para tanto) ante a vedação da reanálise de fatos e provas;

(viiEstudo de Sulamita Szpiczkowski e de Caio Maia Bozzo, de 26.12.2019, sobre qual o prazo decadencial para o Fisco Estadual lavrar auto de infração cobrando o crédito glosado de ICMS em caso de inidoneidade de fornecedor;

(viiiAnálise de Bruno Romano e Rafael Pinheiro Lucas Ristow, de 19.03.2020, sobre acórdão da Câmara Superior do TIT-SP que entendeu pela nulidade da decisão da Câmara Ordinária que se manifestou pela nulidade do processo que declarou a inidoneidade do fornecedor, maculando a prova que embasou o lançamento impugnado pelo contribuinte adquirente;

(ix) Artigo de Érika Garcia Cunha Melo, de 02.04.2020, que disciplinou sobre o posicionamento do TIT-SP sobre o prazo decadencial para o Fisco Estadual lavrar auto de infração cobrando o crédito glosado de ICMS em caso de inidoneidade de fornecedor;

(x) Trabalho de Danilo Andrade Bertagnoli de Figueiredo, de 05.05.2020, sobre a necessidade de comprovação de recebimento das mercadorias no endereço informado nas notas fiscais para ser possível caracterizar a boa-fé do contribuinte;

(xi)    Estudo de Sulamita Szpiczkowski Alayon, de 08.10.2020, sobre a presunção de “interesse comum” do adquirente de mercadorias remetidas por fornecedor inidôneo sem a necessidade de comprovação do dolo do adquirente, evidenciando a contrariedade do posicionamento do TIT-SP àquele fixado pelo Poder Judiciário;

(xii) Texto de Vanessa Rodrigues Domene e Thaís Silveira Takahashi, de 06.11.2020, sobre acórdãos do TIT-SP que concluíram pela responsabilidade solidária supletiva por interesse comum do adquirente de mercadorias acompanhadas de notas fiscais inidôneas;

(xiii) Análise de Danilo Andrade Bertagnoli de Figueiredo, de 04.11.2021, que trata das decisões da Câmara Superior do TIT-SP que contrariam o entendimento do STJ no que se refere à responsabilização do adquirente em operações realizadas por fornecedor inidôneo; e

(xiv) Artigo de Danilo Andrade Bertagnoli de Figueiredo, de 05.05.2022, que analisou a responsabilidade do fornecedor na hipótese de remessas de mercadorias a destinatário diverso do indicado na nota fiscal e aplicabilidade (ou não), ao fornecedor, da alegação de boa-fé (comumente utilizada pelo adquirente).

Autoria: Bruno Romano e Michelle Cristina Bispo Romano

 

Fonte: Jota