Em abril de 2022, a 3ª Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça) afetou a seguinte questão para julgamento, que deu origem ao Tema Repetitivo nº 1.143: “O princípio da insignificância não se aplica aos crimes de contrabando de cigarros, por menor que possa ter sido o resultado da lesão patrimonial, pois a conduta atinge outros bens jurídicos, como a saúde, a segurança e a moralidade pública”.

Recentemente, no último mês de setembro, ao julgar, em sede de recursos repetitivos, o REsp nº 1.971.993/SP e o REsp nº 1.977.652/SP, selecionados como representativos da controvérsia, a 3ª Seção firmou a tese de que:

O princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar mil maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto, excetuada a hipótese de reiteração da conduta, circunstância apta a indicar maior reprovabilidade e periculosidade social da ação.

Restaram vencidos os ministros Joel Ilan Paciornik (relator) e João Batista Moreira (desembargador convocado do TRF-1) — que sugeriram confirmar a antiga orientação jurisprudencial —, tendo prevalecido o voto divergente do ministro Sebastião Reis Júnior.

O relator propunha a seguinte tese: “O princípio da insignificância não se aplica aos crimes de contrabando de cigarros, por menor que possa ter sido o resultado da lesão patrimonial, pois a conduta atinge outros bens jurídicos, como a saúde, a segurança e a moralidade pública”.

Essa era a posição uníssona tanto na quinta como na sexta turmas, especializadas em matéria criminal no STJ, como é possível perceber nos precedentes abaixo — ambos deste ano, inclusive:

[…] 2. A jurisprudência desta Corte é assente no sentido da inaplicabilidade do princípio da insignificância ao crime de contrabando de cigarros, pois a conduta não se limita à lesão da atividade arrecadatória do Estado, atingindo outros bens jurídicos, como a saúde, segurança e moralidade pública. […]

(AgRg no REsp n. 2.053.404/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 28/8/2023, DJe de 30/8/2023).

[…] 2. Este Tribunal Superior firmou entendimento de que o crime de contrabando de cigarros não admite a aplicação do princípio da insignificância, “por menor que possa ter sido o resultado da lesão patrimonial (240 maços, na espécie – e-STJ fl. 226), pois a conduta atinge outros bens jurídicos, como a saúde, a segurança e a moralidade públicas” (REsp n. 1.719.439/PR, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 16/8/2018, DJe 24/8/2018). […]

(AgRg no REsp n. 2.025.469/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, julgado em 13/3/2023, DJe de 16/3/2023).

Na mesma toada, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF):

[…] 4. O princípio da insignificância não incide na hipótese de contrabando de cigarros, tendo em vista que “não é o valor material que se considera na espécie, mas os valores ético-jurídicos que o sistema normativo-penal resguarda” (HC 118.359, Segunda Turma, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, DJ de 11.11.13). No mesmo sentido: HC 119.171, Primeira Turma, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJ de 04.11.13; HC 117.915, Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ de 12.11.13; HC 110.841, Segunda Turma, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, DJ de 14.12.12. […]

(HC 118858, Relator(a): LUIZ FUX, 1ª Turma, julgado em 03/12/2013, DJe 18/12/2013).

Ou seja, os tribunais superiores entendiam que o impacto que o crime de contrabando de cigarro causa na saúde, segurança e moralidade públicas inviabiliza, por si só, a aplicação do princípio da insignificância, mesmo para os casos em que a apreensão da mercadoria for ínfima.

Por outro lado, Luciano Anderson de Souza defende que “não existe qualquer óbice para reconhecimento da bagatela a esse delito, regra de interpretação racionalizadora que rechaça a drasticidade da intervenção jurídico-penal em situações de parca ofensividade, como o ingresso no país com poucos maços de cigarro vedados”.[1]

Nessa senda, com a mudança encabeçada pela 3ª Seção, tal entendimento vem sendo adotado pela 5ª e 6ª Turmas, conforme julgados abaixo:

[…] 2. O princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto, excetuada a hipótese de reiteração da conduta, circunstância apta a indicar maior reprovabilidade e periculosidade social da ação (REsp n. 1.971.993/SP – 3ª Seção).

3. Agravo regimental não conhecido, habeas corpus concedido de ofício, para aplicar o princípio da insignificância e absolver o recorrente da imputação do crime do art. 334, § 1º, IV, do Código Penal, nos autos da Ação Penal n. 0006377-37.2015.4.01.3802 (2ª Vara Criminal de Uberaba/MG). Parecer ministerial adotado.

(AgRg no AREsp n. 2.184.106/MG, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 9/10/2023).

[…] 1. A jurisprudência desta Corte Superior era no sentido de que a importação não autorizada de cigarros constitui crime de contrabando insuscetível de aplicação do princípio da insignificância, não importando a quantidade de maços apreendidos, considerando que o bem jurídico tutelado não se restringe à arrecadação tributária.

2. Recentemente, a 3ª Seção desta Corte Superior, no julgamento do REsp n. 1.971.993/SP e do REsp n. 1.977.652/SP, Tema n. 1.143, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, relator para acórdão Ministro Sebastião Reis Júnior, ocorrido em 13/9/2023, DJe de 19/9/2023, sob a égide dos recursos repetitivos, firmou posicionamento no sentido de que o princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto, excetuada a hipótese de reiteração da conduta, circunstância apta a indicar maior reprovabilidade e periculosidade social da ação.

3. No presente caso, o Tribunal de origem consignou que não é caso de reconhecer a atipicidade material do fato por incidência do princípio da insignificância, embora tenham sido apreendidos apenas 630 (seiscentos e trinta) maços de cigarros estrangeiros em poder dos réus, pois ambos comercializavam o produto contrabandeado em caráter regular (e-STJ fls. 765), ou seja, reconheceu a habitualidade delitiva.

4. Assim, ainda que a quantidade de cigarros contrabandeados seja inferior ao limite estabelecido pelo entendimento desta Corte Superior para o reconhecimento da insignificância penal (1.000 maços), não é possível a aplicação desse princípio, uma vez que há reiteração da conduta, o que afasta a mínima ofensividade penal.

5. Agravo regimental não provido.

(AgRg no AgRg no AREsp n. 2.399.291/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 26/9/2023, DJe de 6/10/2023).

Essa mudança jurisprudencial vem na linha do que dispõe o Enunciado nº 90 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, órgão incumbido da coordenação, da integração e da revisão do exercício funcional dos membros do MPF na área criminal, aprovada na 177ª sessão de coordenação, de 16.03.2020:

É cabível o arquivamento de investigações criminais referentes a condutas que se adéquem ao contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não superar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto. As eventuais reiterações serão analisadas caso a caso.[2]

Antes disso, a 2ª CCR do MPF tinha elaborado a orientação nº 25/2016 — atualmente revogada e que perdeu sentido com o enunciado nº 90 e a jurisprudência do STJ —, que orientava os membros do MPF que oficiassem na área criminal a procederem ao:

arquivamento de investigações criminais referentes a condutas que se adéquem ao contrabando de cigarros, quando a quantidade apreendida não superar 153 (cento e cinquenta e três) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto, ressalvada a reiteração de condutas que cobra a persecução penal.

Nesse contexto, antes mesmo da fixação da nova tese pelo STJ, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região evoluiu sua jurisprudência, que inicialmente fixava o limite de 250 maços de cigarro para reconhecer a aplicação do princípio da insignificância para adotar esse quantum estabelecido pelo enunciado da 2ª CCR do MPF:

[…] 2. Em casos de apreensão de número ínfimo de cigarros e que correspondam a valores irrisórios, o princípio da insignificância é aplicável em caráter excepcional. No julgamento do Recurso Especial n. 1.112.748-TO, selecionado como repetitivo nos termos do art. 543-C do Código de Processo Civil, e do art. 1º e parágrafos da Resolução n. 8, de 07.08.08 expedida pelo Superior Tribunal de Justiça, houve a aplicação do princípio da insignificância em caso de apreensão de 120 (cento e vinte) maços de cigarros estrangeiros (STJ, REsp n. 1.112.748/TO, Rel. Min. Felix Fischer, j. 09.09.09, para fins do art. 543-C do Código de Processo Civil). Convém destacar o Enunciado n. 90 da 2ª CCR, de 16.03.20 do Ministério Público Federal, que prevê o arquivamento de investigação relativa ao crime de contrabando quando a apreensão não superar 1.000 (mil) maços de cigarros, ressalvada a reiteração da conduta: É cabível o arquivamento de investigações criminais referentes a condutas que se adéquem ao contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não superar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto. As eventuais reiterações serão analisadas caso a caso. Não havendo reiteração delitiva, a 5ª Turma do TRF da 3ª Região considerou, inicialmente, o limite de 250 (duzentos e cinquenta) maços de cigarros para a aplicação do princípio da insignificância nos crimes de contrabando (TRF da 3ª Região, ACr n. 2014.61.17.000809-5, Rel. Des. Fed. Mauricio Kato, j. 05.11.18). Em face do mencionado Enunciado n. 90, a 5ª Turma entendeu ser caso de aumentar para 1.000 (mil) maços de cigarros o limite para a incidência do princípio da insignificância (TRF 3ª Região, HC n. 5015855-11.2020.4.03.0000, Rel. Des. Fed. Paulo Fontes, j. 27.07.20).

3. Embora a quantidade de cigarros seja menor de 1.000 (mil) maços de origem estrangeira, a ré é reincidente em crime doloso, conforme destacado na sentença de 1º grau, sendo, portanto, inaplicável o princípio da insignificância.

4. Apelação criminal da ré desprovida.

(TRF 3ª Região, 5ª Turma, ApCrim – APELAÇÃO CRIMINAL – 0003378-15.2018.4.03.6110, Rel. Desembargador Federal ANDRÉ CUSTÓDIO NEKATSCHALOW, julgado em 18/10/2022, Intimação via sistema DATA: 20/10/2022).

Em sentido similar, o TRF4 possuía precedentes no sentido da aplicação do princípio da insignificância a pequenas e médias apreensões, fixando o limite de 500 maços de cigarro:

[…] 1. O parâmetro de 500 maços de cigarros, ou uma caixa, é o referencial para a aplicação do princípio da insignificância ao contrabando de cigarros, interpretando-se que, acima dessa quantidade, estaria evidenciada a destinação comercial da mercadoria, o que colocaria em risco a saúde de outros, não apenas do agente (consumo próprio). […]

(TRF4, ACR 5014980-70.2019.4.04.7009, SÉTIMA TURMA, Relator LUIZ CARLOS CANALLI, juntado aos autos em 11/10/2022).

Contudo, com a mudança jurisprudencial promovida pelo STJ, passou a adotar o limite de mil maços de cigarro, ressalvando, claro, os casos de reincidência:

[…] 1. Seguindo a nova orientação da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que firmou a tese jurídica quanto ao Tema Repetitivo nº 1143, no âmbito dos REsp 1971993/SP e 1977652/SP, o critério agora a ser adotado para o reconhecimento da insignificância no delito de contrabando de cigarros é a apreensão de até 1.000 (mil) maços e desde que não seja constatada a reiteração da conduta. Os efeitos da decisão foram modulados para que a tese seja aplicada apenas aos feitos ainda em curso na data em que encerrado o julgamento, sendo inaplicáveis aos processos com trânsito em julgado.

2. Caso em que o réu é reincidente específico na prática do crime de contrabando de cigarros, além de também responder a outra ação penal, relativa a fato ocorrido nos cinco anos imediatamente anteriores ao ora apurado, na qual lhe é imputada a mesma conduta, o que denota contumácia delitiva e afasta a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância. […]

(TRF4, ACR 5019203-51.2023.4.04.7001, 8ª TURMA, Relator LORACI FLORES DE LIMA, juntado aos autos em 25/10/2023).

Aqui, cumpre destacar a sobrecarga das ocorrências de apreensão de contrabando de até mil maços de cigarro causa sobre a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, a Justiça Federal e o sistema prisional brasileiro, o que inviabiliza sobremaneira a persecução penal nesses casos, sendo razoável a fixação do limite de mil maços de cigarro, tanto do ponto de vista de política criminal como de gestão de recursos.

Por tais razões, em seu voto-vista, ministro Sebastião Reis Júnior aduziu que “a posição adotada pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, no sentido da aplicação do princípio da insignificância para a hipótese de contrabando de cigarros em quantidade que não ultrapassa mil maços, não só é razoável do ponto de vista jurídico como ostenta uma base estatística sólida para sua adoção”.


[1] Souza, Luciano Anderson de. Direito penal [livro eletrônico]: parte especial – arts. 312 a 359-R do CP. v. 5. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, RB-28.4.

[2] Sobre os cigarros eletrônicos, a 2ª CCR do MPF editou o Enunciado nº 106, aprovado na 211ª Sessão de Coordenação, de 07.11.2022: “É cabível o arquivamento de investigações criminais referentes a condutas que se adéquem ao contrabando de cigarros eletrônicos quando a quantidade apreendida não superar 5 (cinco) unidades. As eventuais reiterações serão analisadas caso a caso.”

 

Fonte: Conjur