O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou um recurso da Fazenda Nacional contra a Cremer, da Viveo, em um caso de amortização de ágio. É o primeiro processo sobre o tema julgado pela Corte. Para o relator, a matéria seria infraconstitucional – ou seja, a última palavra seria do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – e a União não enfrentou os argumentos no acórdão que lhe foi desfavorável, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). O entendimento é importante porque, no STJ, há precedentes favoráveis a contribuintes. Além da derrota no próprio caso Cremer, outros dois recursos da União não foram conhecidos, em um caso da Gerdau e outro da Companhia Energética de Pernambuco – antiga Celpe, hoje Neoenergia Pernambuco. A cobrança contra a Cremer, fabricante de produtos para o setor da saúde, se permitida, seria da ordem de R$ 40 milhões, referentes a Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL. Ao Valor, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) informou que vai recorrer da decisão. Apesar do relator não entrar no mérito do caso e tratar apenas de questões processuais, a interpretação dele foi vista com bons olhos por tributaristas. Isso porque o ministro delimita que a discussão é sobre lei ordinária, o que afasta a competência do STF. Ela também preserva o precedente da Cremer no STJ, considerado o mais completo até agora. O tema é controvertido e gerou decisões para ambos os lados na esfera administrativa. Ainda não há como falar em jurisprudência sobre o assunto, porque muitas ações que saíram do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) ainda não foram julgadas pelos TRFs. No STJ, até então, a situação é favorável. Segundo um mapeamento feito pelo Neves & Battendieri Advogados Associados, existem 11 casos sobre ágio no tribunal superior. Sete advêm do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). Desses, cinco são da antiga Celpe. Outros três chegaram do TRF-4 e um do TRF-3. Só há decisão de mérito no processo da Cremer. A União chegou a abrir um edital de transação tributária específica para esse tema, em 2022 (Edital nº 9/2022). Na época, a PGFN informou que o valor do contencioso envolvendo a tese era de R$ 150 bilhões, sendo R$ 25,6 bilhões inscritos em dívida ativa. Outros R$ 122,6 bilhões estavam no Carf e Delegacias de Julgamento (DRJ), somando um total de 377 processos. No caso de ágio interno, tema abordado no Caso Cremer, a discussão gira em torno da Lei nº 9.532/1997. Os artigos 7º e 8º preveem que quando um patrimônio de uma empresa for absorvido por outra a partir de “incorporação, fusão ou cisão, na qual detenha participação societária adquirida com ágio ou deságio”, é possível que o sobrepreço seja deduzido do IRPJ e CSLL. Contribuintes defendem que a legislação não veda a operação entre partes interdependentes, pois a proibição só veio com a Lei nº 12.973/2014. Já a Fazenda alega que manobras feitas entre empresas do mesmo grupo não podem dar margem à dedução de ágio, mesmo antes de 2014. Isso porque não há um terceiro independente para a compra, o que pode provocar operações artificiais, com o aproveitamento indevido do benefício fiscal. No recurso ao STF, a PGFN argumenta violação ao princípio da capacidade contributiva e que, no caso Cremer, “não houve qualquer dispêndio monetário, mas mera troca de ações”. Para o órgão, a decisão do TRF-4 autoriza “a criação artificial de um ágio, sem qualquer circulação de novas riquezas e sem a presunção da perda de investimento pelo real investidor, e esse valor, dotado da mais pura artificialidade, virá a ser utilizado para reduzir os valores de IRPJ e CSLL devidos aos cofres públicos”. Para Moraes, a procuradoria “não aduz nenhum elemento concreto atinente ao impacto financeiro, social ou jurídico da matéria, limitando-se a tecer considerações genéricas”. E que as ofensas à Constituição seriam “meramente indiretas”. “Não havendo demonstração fundamentada da presença de repercussão geral, incabível o seguimento do recurso”, afirma o relator (RE 1515226). Mauricio Bueno, sócio do HRSA Sociedade de Advogados, afirma que os argumentos da Fazenda foram genéricos, assim como em outros casos. “A União fez um esforço para levar o caso para o Supremo, ela ainda pode recorrer e tentar levar a discussão para o colegiado, mas me parece pouco provável que se analise as questões de mérito, porque estaria extrapolando sua competência”, diz. A decisão de Moraes, mesmo que monocrática, mostra uma “tendência” do que pode vir a ser o entendimento da Corte. Decisão de Moraes pode influenciar o resultado de outros casos” — Guilherme P. Neves O objeto do litígio foi uma operação da Cremer feita em 2004, em que ela incorporou a Cremerpar para receber um investimento estrangeiro do Merril Lynch Global Partners (MLGP). A reestrututação societária foi realizada em três etapas. Primeiro os controladores da Cremer formaram a Cremerpar para reunir suas participações. Na sequência, com aporte da instituição financeira, compraram as ações dos minoritários. A terceira etapa foi a aquisição do controle da Cremer pelo Merril Lynch. Os antigos controladores seguiram com participação diluída. Cada etapa gerou ágio, mas a Receita Federal não questiona o segundo ágio, gerado com a compra da participação dos minoritários. Ela autuou valores referentes aos outros dois. Na visão do tributarista Guilherme Pereira Neves, sócio Neves & Battendieri Advogados, que representa a Cremer no processo, o caso é mais sobre empresa veículo do que ágio interno – pois este representa uma parcela menor da operação. “O que se tem aqui é uma alienação de controle societário por meio de uma reorganização societária complexa, mas em um negócio com substância econômica”, afirma Neves, citando o voto do ministro Gurgel de Faria na ação, quando estava no STJ. Segundo ele, alguns argumentos da decisão de Moraes podem influenciar o resultado de outros casos. “É um precedente que confirma o fato de que a matéria, em princípio, não envolve preceitos constitucionais e, portanto, o precedente do STJ fica mais firme em relação a essas operações.” Para Renato Silveira, sócio do Machado Associados, existe tanto uma discussão jurídica quanto de fato no julgamento dos casos de ágio. A questão jurídica é se a Lei nº 9.532/1997 trazia vedação para apurar ágio decorrente de operações entre empresas do mesmo grupo. “O STJ e o TRF-4, primando pelo princípio da legalidade, disseram que o texto da lei não permite a interpretação conferida pela União, porque não há vedação expressa ao ágio gerado”, diz. Já a análise do fato, afirma, consiste em saber se houve uma operação artificial, como alega a PGFN. “São aquelas operações que não tiveram propósito algum a não ser a geração de um ágio”, diz. “Mas é uma prova que a Fazenda deve produzir em cada processo, o que não foi trazido nesse caso [da Cremer]. E por ser um aspecto probatório, não caberia ao STF julgar.” Em nota, a Cremer afirma que a decisão de Alexandre de Moraes “demonstra que a dedução fiscal de ágio registrado pela Cremer não envolve matéria constitucional”. “Mantida tal decisão, prevalecerá a linha de entendimento do STJ, a qual representa um importante precedente que dá com segurança jurídica às operações que envolverem investimentos estrangeiros não especulativos e nacionais em combinações de negócio feitas entre partes não relacionadas”, diz. Em nota, a PGFN afirma que vai recorrer da decisão “tendo em vista que é um dos primeiros casos de ágio interno a ser analisado pela Suprema Corte”. “Entende a Fazenda que há elementos em discussão que precisam ser melhor examinados quando do julgamento pela Turma do Supremo Tribunal Federal”, diz.
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