O ITBI nunca foi um tributo de grandes emoções, mas os três últimos anos trouxeram algumas surpresas interessantes, tornando movediço um solo que parecia basáltico.
Primeiramente, nos esquecíveis idos de 2020, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no Tema 796 (no julgamento do RExt 796.376-SC), estabelecendo que a imunidade prevista no inciso I do § 2º do artigo 156 da CF não alcança o valor dos bens que exceder ao capital social, prevalecendo entendimento bastante casuístico, infelizmente decorrente de uma situação bem pouco usual contida no leading case, pois havia ali uma rara criação de reserva de capital com o ágio excedente ao quanto definido como aporte de capital. Ponto negativo e tumultuário, dado o uso de caso excepcional para criar regra geral.
Posteriormente, já em 2022, tivemos a conclusão da discussão do Tema 1.113 no STJ (no julgamento do REsp 1.934.821-SP), consolidando a posição jurisprudencial quanto à ilegalidade da aplicação das pautas fiscais para fins de atribuição forçada da base de cálculo do ITBI, fulminando as várias normas municipais que impunham “valores venais de referência”, a fim de obrigar o respeito ao valor efetivo do negócio, desde que não maculado por fraude ou simulação. Ponto para lógica, estabilidade e segurança jurídica.
Municípios e suas interpretações elásticas
Apesar de haver, em relação ao julgamento do STF, alguma clareza mínima quanto ao contexto sui generis, textualmente destacada no voto vencedor (“revelaria interpretação extensiva a exegese que pretendesse albergar, sob o manto da imunidade, os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, e sim a outro objetivo — como, no caso presente, em que se destina o valor excedente à formação de reserva de capital”), decorreu dali uma verdadeira enxurrada de interpretações elásticas e oportunistas por parte de várias municipalidades. E, pior, induzindo alguns julgadores a embarcar em seu ilusionismo.Playvolume00:00/00:00conjur_v3TruvidfullScreen
Encontramos algumas decisões que chegam ao disparate de afirmar que “configura implícita reserva de capital” a situação de conferência de imóveis ao capital por valor aquém daquele que seria normal em uma compra e venda. Ora, reserva de capital é termo técnico societário e fiscal, que somente existe quando formalmente caracterizada, sendo afrontosa a criatividade e a elasticidade que se pretende dar, até porque os pilares tributários não permitem criar tributação numa circunstância sem qualquer base econômica ou jurídica, num delírio digno de caverna platônica.
O problema, nos parece, surge com a contaminação entre as duas decisões dos tribunais superiores, que são aplicáveis a situações distintas, sendo abusiva a leitura oportunista e ilusionista que vem sendo tentada.
A limitação da imunidade na conferência de imóveis ao capital social de empresa, conforme riscada pelo STF, somente existe se deliberadamente o sócio destaca parte do valor definido para o imóvel para outra destinação que não seja a de integralização das quotas/ações, como ocorrido no infeliz caso julgado. Não cabe ao município estipular o valor do negócio aqui, pois é uma operação de natureza distinta, para a qual, inclusive, há regra expressa prevendo a opção de ser utilizado o valor contábil ou o valor de mercado, sendo direito inarredável do sócio essa escolha.
Somente surgiria direito de revisão ou arbitramento, por parte do fisco municipal, portanto, se o valor estipulado para o imóvel integralizado for superior àquele definido como a integralizar pela emissão de ações/quotas ou for demonstrado que tal valor é divergente daquele utilizado para fins contábeis pela pessoa do sócio.
Não é possível impor valor de mercado
É totalmente sem fundamento a pretensão fiscal de querer arbitrar o valor do negócio se não ocorrentes uma das premissas acima, pois não lhe é permitido desqualificar ou desconsiderar o valor contábil utilizado, a fim de impor o valor de mercado para um negócio que não é de compra e venda e para o qual há regra fiscal expressa (artigo 23 da Lei nº 9.249/1995).O acórdão do TJ-SP, no Agravo de Instrumento 2211470-44.2022.8.26.0000; relator: desembargador Geraldo Xavier é cirúrgico ao traçar a linha divisória das situações: “bens imóveis destinados à constituição do capital social, não à formação de reserva de capital. Diferenciação com o caso analisado no julgamento do tema 796 das questões constitucionais de repercussão geral”.
A permissão dada pelo STJ, para revisão e arbitramento da base de cálculo, naqueles casos em que houver vício na definição do valor do negócio, somente é aplicável, portanto, quando a autoridade fiscal demonstrar que: está comprovada a omissão ou a inexatidão de que trata o artigo 149, inciso V, do CTN; ou são omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo, conforme artigo 148, do CTN.
Para os casos de conferência de bens imóveis ao capital social de empresa, esses permissivos somente se abrem na circunstância de o sócio falsear na informação do valor contábil ou se informar valor de mercado incondizente com a realidade. Neste caso, se escolher o critério de valor de mercado para fins de estipulação do valor do bem na conferência. Escolhido o valor contábil, passa a ser esse o “valor do negócio em condições normais de mercado”, pois não há qualquer paralelo possível com uma operação de compra e venda.
Sendo a definição de valor para a conferência prerrogativa exclusiva do sócio, desde que aceita pela sociedade, se não ocorrentes esses falseamentos acima destacados, o fisco municipal somente poderá exercer sua força de tributação se deliberadamente houver um destacamento de parte daquele valor a outro título que não o de integralização das quotas/ações emitidas.
Essa é a leitura simples e objetiva da decisão do STF por mais que não aceitem e não gostem os fiscos municipais, sendo enorme o prejuízo causado pelas interpretações ilusionistas com que insistem e atulham ainda mais nosso Judiciário.
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