A natureza alimentar do crédito trabalhista (artigo 100, §1º, da CRFB/88), quando lida em consonância com o direito fundamental à duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, da CRFB/88), revela a importância de o processo do trabalho ser entendido como um instrumento de efetividade de direitos, jamais como um fim em si mesmo.

A noção de processo enquanto instrumento de efetividade é, inclusive, um dos fundamentos do CPC/2015 (Lei 13.105/2015), que, em seus 12 primeiros artigos, traz aquilo que ouso denominar de “corpo e alma” do processo judicial brasileiro.

Entre os referidos artigos, encontramos regras e princípios que compõem o grupo das denominadas normas fundamentais do processo, merecendo destaque o direito das partes de “obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa” (artigo 4º), a boa-fé objetiva enquanto padrão ético de comportamento dos sujeitos do processo (artigo 5º) e a cooperação que deve nortear as condutas dos sujeitos do processo (artigo 6º).

Não há como negar, contudo, que o próprio CPC/2015, ainda no rol das normas fundamentais do processo, redimensionou os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa, em especial por meio dos artigos 9º e 10.

É justamente a partir do diálogo entre as normas processuais constitucionais (representadas por meio do direito fundamental à duração razoável do processo, na forma do artigo 5º, LXXVIII, da CRFB/88), as normas que revelam a natureza alimentar do crédito trabalhista (representadas por meio do artigo 100, §1º, da CRFB/88) e as normas fundamentais do processo (não apenas do processo civil, em que pese estejam presentes no corpo do Código de Processo Civil (CPC), afinal o artigo 15 do referido Condex abre, por si só, o diálogo com os demais ramos processuais, inclusive com o processo do trabalho), que se busca, por meio desse breve texto, analisar as possibilidades e os limites das medidas executivas atípicas, em especial da apreensão de passaporte e Carteira Nacional de  Habilitação (CNH) do devedor para satisfação de um crédito trabalhista.

Enquadramento normativo do tema

Historicamente, na fase de cumprimento de sentença (ainda execução no âmbito do processo do trabalho, na forma do artigo 878 da Consolidação das Leis do Trabalho ou CLT), o credor valeu-se das medidas executivas típicas para efetividade do seu direito.

Entre elas, destaca-se a penhora prevista, no âmbito do processo do trabalho, no artigo 883 da CLT.t

O CPC/2015, contudo, como forma de materializar a nova ética processual por ele inaugurada, destinada à satisfação, em tempo razoável, da solução integral de mérito pretendida, trouxe, em seu artigo 139, IV (e também nos artigos 297 e 536, §1º), uma cláusula geral de medidas executivas atípicas, prevendo que “o juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: IV — determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.

A amplitude da cláusula geral, a despeito de ser necessária, justamente por ser cláusula geral, acaba por provocar reflexões importantes (e necessárias) acerca do seu alcance.

É justamente nesse momento que surge a necessidade de se compreender que o conceito de norma jurídica pressupõe o binômio “texto + interpretação”, razão pela qual faz-se extremamente necessário atribuir o adequado sentido e o necessário alcance (é isso que é interpretar) ao texto do inciso IV do artigo 139 do CPC.

Apreensão de passaporte e de CNH como medidas executivas atípicas

A apreensão de passaporte, documento de viagem que identifica o viajante em outros países, e/ou de CNH, documento oficial que, no Brasil, atesta a aptidão de um cidadão para conduzir veículos automotores terrestres, assumem, entre as medidas executivas atípicas, um certo protagonismo nos debates.

Isso porque ao atingirem, primariamente (liberdade de ir, vir ou permanecer), no caso da apreensão do passaporte, e, de forma secundária, no caso da apreensão da CNH, o direito de liberdade do devedor, as referidas medidas acabam por trazer à tona o debate acerca do princípio da natureza real da execução (artigo 789 do CPC/2015).

Contudo, nada no Direito pode ser analisado de maneira isolada, razão pela qual – se é certo que o CPC/2015, em seu artigo 789, prevê que “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei” — é também certo que o mesmo CPC prevê, em seu artigo 77, IV, como deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo, “cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação”.

Assim, a partir de uma leitura combinada dos dois dispositivos acima, verifica-se que o verdadeiro sentido e o verdadeiro alcance do conteúdo do artigo 139, IV, do CPC/2015, não é (e não pode ser) algo estático, mas sim dinâmico, mediante um diálogo necessário com as circunstâncias do caso concreto.

Requisitos para licitude das medidas executivas atípicas

Partindo da premissa de que não há, aprioristicamente, nenhuma medida executiva atípica que seja vedada pelo ordenamento jurídico, é importante que sejam definidos critérios para licitude de uma medida judicial que determine a apreensão de passaporte e/ou de CNH do devedor.

Os referidos critérios, ora apresentados, partem de um pressuposto básico: as medidas executivas atípicas não podem, em nenhum caso, serem usadas como instrumento de punição. Ao contrário, precisam possuir, para serem lícitas, abstratamente, uma potencial efetividade.

Assim é que são, em qualquer caso, requisitos para licitude das medidas executivas atípicas:

a) o exaurimento das medidas executivas típicas, sem que tenha havido êxito na satisfação do crédito: é fundamental que as medidas executivas atípicas sejam a última ratio.
b) nexo etiológico entre a medida (apreensão de passaporte e/ou CNH) e o fim (satisfação do crédito) esperado: a ordem de apreensão de um passaporte e/ou uma CNH não pode, jamais, revelar-se punitiva. Assim, faz-se imprescindível que, abstratamente, ela revele uma potencial efetividade, como forma de ser capaz de alcançar o fim pretendido (satisfação do crédito).
c) prova de que o devedor está ocultando patrimônio: caso se trate de um devedor que, de fato, encontre-se materialmente insolvente, eventual ordem de apreensão de passaporte e/ou de CNH se revelaria punitiva, por não possuir qualquer potencialidade de efetividade. É fundamental, pois, que haja alguma prova de ocultação de patrimônio por parte do devedor, o que, por exemplo, é possível de ocorrer a partir da juntada aos autos de fotos extraídas de redes sociais que revelem um padrão de vida do devedor incompatível com a situação de insolvência (formal) revelada, até então, nos autos, pela ausência de êxito das medidas executivas típicas (tentativas de penhora de dinheiro, de veículos, imóveis etc.).

Observados os requisitos acima, eventual medida de apreensão de passaporte e/ou CNH se revelará necessária, adequada e proporcional, equacionando, portanto, de maneira satisfatória, o direito do devedor à natureza real da execução e o direito do credor à satisfação do seu crédito.

Jurisprudência sobre o tema

No âmbito do STF, tramita a Ação Direta de Inconstitucional (ADI) 5941, ainda pendente de julgamento, por meio da qual se discute justamente a constitucionalidade ou não de algumas das medidas executivas atípicas, inclusive apreensão de passaporte e de CNH.

Já há, nos autos, parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) propondo que “a apreensão de Carteira Nacional de Habilitação, passaporte, a suspensão do direito de dirigir e a proibição de participação em concursos públicos ou licitações, como formas de coagir o devedor a cumprir sentença e se submeter a execução, são inconstitucionais”.

No âmbito do STJ, há decisão da 3ª Turma (RHC 99.606) que, interpretando o tema, afirma, de forma categórica, que “a medida poderá eventualmente ser utilizada, desde que obedecido o contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada também a proporcionalidade da providência”.

Por fim, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (TST), já há alguns julgados (TST-AIRR-139000-66.2003.5.18.0007; Processo 8790-04.2018.5.15.0000; e Processo RO-1412-96.2017.5.09.0000) que enfrentaram o tema, também sob a ótica da proporcionalidade ou não das medidas de apreensão de passaporte e/ou CNH.

Meio adequado para impugnar a decisão

Por fim, é importante destacar que tanto STJ quanto TST têm firme entendimento de que eventual decisão que determine a apreensão de passaporte pode ser impugnada por meio de habeas corpus, por haver, neste caso, violação ao direito de liberdade em sentido primário (liberdade de ir, de vir e de permanecer).

Por outro lado, as mesmas decisões deixam claro que, no caso de apreensão da CNH, por não haver ameaça ao direito de ir e vir do titular, afinal ele pode se deslocar, por exemplo, por meio de transporte público, não há falar em impugnação por meio de habeas corpus, sendo cabível, assim, no âmbito do processo do trabalho, a via do agravo de petição (caso a decisão tenha natureza terminativa de feito – artigo 897, a da CLT) ou do mandado de segurança (caso a decisão tenha natureza interlocutória, por ausência de recurso cabível, tendo em vista o disposto no artigo 893, §1º, da CLT).

Conclusões

Independentemente de todos os debates, justos e necessários, que podem ser travados a respeito das possibilidades e dos limites do artigo 139, IV, do CPC/2015, inclusive no âmbito do processo do trabalho, uma coisa é certa: o artigo 139, IV, do CPC/2015, permite e favorece que uma cultura processual brasileira seja combatida e, quiçá, alterada: a cultura de que é direito do devedor não satisfazer um crédito consubstanciado em um título líquido, certo e exigível!

 

Fonte: Jota