Estamos próximos do Dia Mundial do Livro – 23 de abril -, mas a comemoração da importante data perde seu brilho após recente posicionamento da Receita Federal do Brasil sobre a tributação dos livros pela CBS (Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços), conforme externado em sua página da internet.

A polêmica tem origem no Projeto de Lei 3.887/20, apresentado em 21/07/20 pelo Governo Federal, com vistas a implementar a tão desejada (ou não) reforma tributária. A referida proposição legislativa institui a CBS em substituição ao PIS e à COFINS cumulativos e não-cumulativos atualmente em vigor.

A campanha “quando todos pagam, todos pagam menos” somada às teses de simplificação, uniformização de alíquota, desoneração da cadeia produtiva mediante criação de um tributo, da espécie contribuições, essencialmente não-cumulativo, redução da litigiosidade, adequação às recomendações da OCDE quanto à tributação do consumo da economia digital, são justificativas que visam convencer o cidadão comum acerca das vantagens da substituição das contribuições para o PIS e a COFINS pela CBS. Esses argumentos encontram-se brevemente explicitados no PL 3.887/20 e em apresentações no site da Receita Federal do Brasil (RFB), de forma bastante didáticas.

O “Perguntas e Respostas” da Receita Federal, por sua vez, é conhecido como um veículo utilizado para facilitar a comunicação entre o Governo Federal e o público em geral, especialmente quando o assunto envolve a complexa legislação tributária. Quase todo cidadão que em algum momento de sua vida esteve obrigado a preencher e a entregar a declaração de imposto de renda da pessoa física (IRPF) já consultou o “Perguntas e Respostas” disponibilizado e atualizado todo ano no site da RFB.

Como não poderia ser diferente, a CBS também foi premiada com seu “Perguntas e Respostas”. Mas o grande troféu ficou com a pergunta direcionada à tributação dos livros: “Por que a CBS será cobrada na venda de livros?”.

A resposta começou bem ao constatar que “a venda de livros e do papel destinado à sua impressão são imunes à cobrança de impostos, nos termos do art. 150, VI, “d” da Constituição Federal. Tal imunidade não se estende às contribuições para a seguridade social, como é o caso da Contribuição para o PIS/Pasep e da COFINS. Em 2014, no entanto, foi concedida a isenção legal dessas contribuições sobre a receita decorrente da venda de livros e do papel destina à sua impressão.” Não se discute, portanto, a norma da CF/88 que veda a cobrança estrita de impostos sobre os livros.

Não obstante isso, a grande polêmica surgiu com os argumentos utilizados para justificar a incidência da CBS sobre a receita decorrente das vendas dos livros, eliminando-se de forma transversa a isenção do PIS e da COFINS, prevista no art. 28, inciso VI, da Lei 10.865/04, em vigor desde 2004. Segundo a Receita Federal, não teria sido identificada nenhuma correlação entre a alíquota zero do PIS e da COFINS, em vigor desde 2004, e a redução do preço dos livros.

Além disso, também nos termos do afirmado pela Receita Federal, a tributação dos livros pela CBS – em substituição ao PIS e à COFINS -, encontraria suporte na Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), segundo a qual as “famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não didáticos e a maior parte desses livros é consumido pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos.”. Esse discurso já encontrou eco inclusive em texto publicado no Jota: “Tributar ou não os livros?”, de Lorreine Messias e Vanessa Rahal Canado[1].

É importante destacar que não se objetiva neste brevíssimo artigo revisitar e rediscutir o entendimento firmado pelo STF, quanto à natureza objetiva da imunidade prevista no art.150, inciso VI, “d”, da CF/88[2]. Desde a primeira aparição da imunidade dos livros na Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional 1 de 17 de outubro de 1969, Aliomar Baleeiro esclarecia que a norma “protege objetivamente a coisa apta ao fim, sem referir-se à pessoa ou entidade.”[3].

Se as famílias de baixa renda não consomem livros, o papel a ser desempenhado pelo Estado é justamente buscar eliminar essa falta de acesso à informação e à cultura, por meio de políticas públicas, fornecendo livros e incentivando a leitura para essa já discriminada parcela da população.

Exatamente com este objetivo foi criada a Lei 10.753/03, que instituiu a Política Nacional do Livro e conferiu o poder-dever ao Poder Executivo de criação e ampliação de projetos de acesso ao livro e de incentivo à leitura. As diretrizes da lei, indicadas em seu art. 1º, evidenciam que seu objetivo é justamente assegurar ao cidadão o pleno exercício do direito de acesso e uso do livro:

“livro é o meio principal e insubstituível da difusão da cultura e transmissão do conhecimento, do fomento à pesquisa social e científica, da conservação do patrimônio nacional, da transformação e aperfeiçoamento social e da melhoria da qualidade de vida”.

Como destacado pelo Ministro Marco Aurélio no RE 595.676/RJ, do qual era relator, cujo teor foi transcrito em sua integralidade para o RE 330.817/RJ, que fixou a tese de repercussão geral sobre a imunidade do livro-digital e seus suportes de leitura[4], livro não é uma mercadoria qualquer, mas sim um dispositivo que “visa promover a educação, garantir o princípio da liberdade de manifestação do pensamento e da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, facilitando e estimulando a circulação de ideias, o direito de informar e de ser informado e a própria liberdade de imprensa. Considerados esses propósitos, a imunidade se apresenta como essencial ao próprio desenvolvimento da cultura, da democracia e da cidadania participativa e reivindicatória.”

O voto proferido pelo Ministro Relator Dias Toffoli no RE 330.817, que apresenta memorável estudo sobre o histórico da imunidade prevista atualmente no art. 150, VI, “d”, da CF/88, apresentou como principal fundamento para a desoneração do papel destinado à impressão dos livros, jornais e periódicos a necessidade de impedir a manutenção da censura que ocorrera no período do Estado Novo (1937 a 1945), manifestada por meio da força tributária que incidia sobre o papel linha d´água, insumo utilizado pelos veículos de comunicação:

“A par da censura direta, o governo ainda coagia a propagação de ideias contrárias ao regime mediante pesada tributação das importações do papel de imprensa (o papel linha d’água) e o controle, de forma insidiosa, da isenção aduaneira sobre esse insumo. A concessão do benefício da intributabilidade era facilitada aos jornais partidários do regime e dificultada, ou até impedida, aos que propugnavam por ideologia tida por nociva ou inapropriada (Decreto-Lei nº 300/38; art. 135, f, do Decreto-Lei nº 1.949/39). Com isso, o produto final dos veículos de comunicação saía mais caro e o acesso à informação se tornava mais restrito e, como decorrência disso, poucos órgãos de mídia suportavam a carga tributária”.

O próprio ex-chefe do Serviço de Controle da Imprensa do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), Sampaio Mitke, em relato publicado no Estado de São Paulo, afirmou que a imposição tributária, justamente por possuir reflexo econômico, era mais eficiente que as ameaças e o uso da força por parte da polícia[5]:

“O trabalho era limpo e eficiente. As sanções que aplicávamos eram muito mais eficazes do que as ameaças da polícia, porque eram de natureza econômica. Os jornais dependiam do governo para a importação do papel linha d’água. As taxas aduaneiras eram elevadas e deveriam ser pagas em 24 horas. E o DIP só isentava de pagamento os jornais que colaboravam com o governo. Eu ou o Lourival é que ligávamos para a Alfândega autorizando a retirada do papel”.

A nossa história, portanto, prova que a força impositiva tributária é capaz de manipular e direcionar, sim, o acesso à informação, à cultura e ao conhecimento. Portanto, não se trata de simples direcionamento de tributação para onerar os supostamente “mais ricos” da sociedade. Como se vê, a justificativa da Receita Federal vai ao encontro de instrumento utilizado pelo Poder Público em período da nossa história marcado politicamente pelo autoritarismo.

Há poucos dias, ao receber a informação de que a União Federal pretende tributar a receita proveniente da venda dos livros, o atual Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, relatou, em entrevista a um jornal de grande circulação no Brasil, interessante movimento por ele capitaneado que retirou Celorico de Basto, distrito de Braga, do patamar de vila mais pobre de Portugal[6]. A criação de uma biblioteca pública aliada a estímulos à leitura e doações de livros foram providências decisivas para o desenvolvimento cultural e social da região.

O livro, como se sabe, é veículo de difusão de pensamentos, transmissão de ideias e um dos instrumentos mais eficazes de perpetuação e fixação da cultura de um povo. Permitir e estimular o acesso ao livro além de “assegurar a liberdade de pensamento, de expressão, o acesso à informação e a própria difusão da cultura e da educação”[7] constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previsto no art. 3º, inciso III, da CF/88, e é uma valiosa ferramenta de redução das desigualdades sociais.

Na medida em que o estudo, no qual se baseia a justificativa do PL 3.887/20, aponta que famílias de baixa renda não leem livros, o movimento da reforma tributária proposto pelo Governo Federal deveria ter apontado no sentido diametralmente oposto ao do discurso indicado no “Perguntas e Respostas” da CBS: manter a desoneração fiscal das receitas provenientes das vendas dos livros e estimular o hábito da leitura nessas famílias. Talvez, assim, aquela parcela da população, identificada na pesquisa como “não consumidores de livro”, passe, gradativamente, a se posicionar em outros patamares de cultura, o que permitirá maior movimentação nos degraus da rígida estratificação social que marca há tantos anos a história do Brasil.

[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tributar-ou-nao-os-livros-13042021, acesso em 18.04.21.

[2] RE 628.122, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ. 30.09.13; RE 566.622, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 23.08.17, RE 342.336 Ag, Segunda Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJ 11.05.07, RE 252.132, Primeira Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 19.11.99.

[3] “Não aproveita ao Imposto de renda devido pelo comerciante ou fabricante de papel, mas repugna ao fim do texto a discriminação evidente. A imunidade no caso é objetiva:  – da coisa, papel de impressão ou livro, jornal, periódico. Na prática, a imunidade alcança o Imposto sobre Produtos Industrializados, o Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e os direitos alfandegários sobre o papel.” (BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, 7ª Ed. Forense. 2003, p. 339.)

[4] Tema nº 593: “A imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/88 aplica-se ao livro eletrônico (e-book), inclusive aos suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo.”

[5] Boletim ABI. Ano XXIII, nº de novembro/dezembro de 1974, apud GALVÃO, Flávio. A liberdade de informação no Brasil – III. O Estado de S. Paulo, 29/11/1975. Suplemento do Centenário, n. 48, p. 4.

[6] https://blogs.oglobo.globo.com/portugal-giro/post/marcelolivros.html, acesso em 18.04.21.

[7] COSTA, Regina Helena. A imunidade tributária do livro eletrônico e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Sistema Constitucional Tributário – dos fundamentos teóricos aos hard cases tributários, Estudos em homenagem ao ministro Luiz Fux -, Org. Marcus Lívio Gomes e Andrei Pitten Veloso. Ed. Livraria do Advogado. Porto Alegre: 2014, p.251.

Fonte: Jota