O naufrágio do RMS Titanic ocorreu em uma madrugada de mar calmo e sem lua, de 14 para 15 de abril de 1912, no Atlântico Norte, quatro dias após o início de sua viagem inaugural, iniciada em SouthamptonInglaterra, com destino à cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos.

Relatos oficiais informam que a cabine de comando recebeu avisos de que haveria situação de mar com gelo na noite do acidente, mas que ainda assim o navio estava perto da sua velocidade máxima quando houve contato visual com o iceberg, circunstância que impediu a melhor eficiência da manobra de evasão e fez naufragar a majestosa embarcação[1].

Adaptando o poeta maior[2], seria lícito afirmar: no meio do caminho do Titanic tinha uma pedra. Tinha uma pedra (de gelo) no meio do caminho do Titanic.

O que isso tem a ver com direito tributário e 110 anos depois, perguntariam os ávidos pelo discurso técnico neste ambiente de publicações jurídicas? É que um conjunto de congelamentos de base de cálculo de ICMS para óleo diesel, no meio do caminho para um destino importante e materializado por uma parte pouco destacada e testada de uma lei, grande e merecidamente festejada, pode provocar o naufrágio das titânicas expectativas imediatas dos comandantes (governo, editores da norma), dos operadores e dos consumidores (destinatários da lei).

Quando, na madrugada de 10 para 11 de março de 2022, com total aceleração a Câmara dos Deputados (CD) aprovou o projeto de lei complementar nº 11/2020 (PLP 11/20)[3], todas as principais matérias jornalísticas e entendimentos jurídicos se fixaram no importante primeiro passo para a tributação monofásica do ICMS sobre combustíveis[4] – o que atende a diversos pleitos da comunidade tributária e da sociedade.

O principal mote da referida aprovação era promover uma redução nos preços de combustíveis em curto (como se verifica também na redução de PIS e COFINS) e médio (ICMS monofásico com alíquota específica desvinculada do preço) prazos.

A urgência, talvez temperada pela então pendência de julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 68 no Supremo Tribunal Federal – STF[5] (ou teria mais a ver com as iminentes eleições gerais?), pode ser atestada quando percebemos que o Senado Federal (SF) tinha, horas mais cedo no mesmo dia, enviado o projeto aprovado[6] à Câmara e, já no dia seguinte ao da aprovação do projeto no Congresso Nacional (CN), a Presidência República o sancionou e fez publicar a Lei Complementar nº 192/2022 (LC 192).

A parte mais aparente e destacada da LC 192, disciplinando o previsto na Emenda Constitucional nº 33/01 (EC 33) e regulamentando no que lhe cabe o art. 155, §2º, h, e §4º, da Constituição da República (CRFB/88), depende de adequada regulamentação pelo o Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ e diz respeito à instituição, sobre alguns combustíveis, de um ICMS monofásico, uniforme e com alíquota específica (e, de passagem, parecem-nos inúmeros os benefícios dessa sorte de tributação para combustíveis[7]).

Entre os mais reluzentes artigos 8º e 9º (desoneração de tributos) e os artigos 1º a 6º (monofasia para ICMS) está um perigoso obstáculo: o art. 7º da LC 192/2022. Isso porque alguns de seus principais riscos não são visíveis senão após simulações em sistemas específicos e complexos exercícios matemáticos.

Demonstraremos que o art. 7º, no contexto em que se apresentou originalmente, não trazia grande novidade qualitativa, em razão do cenário desenhado pelas Unidades Federativas (UFs) desde o Convênio CONFAZ nº 192/2021. Vejamos com vagar sua estrutura normativa, para – camada a camada – tentarmos demonstrar as dificuldades que tal norma nos apresenta:

 

“Art. 7º Enquanto não disciplinada a incidência do ICMS nos termos desta Lei Complementar, conforme o disposto no art. 6º, a base de cálculo do imposto, para fins de substituição tributária em relação às operações com diesel, será, até 31 de dezembro de 2022, em cada Estado e no Distrito Federal, a média móvel dos preços médios praticados ao consumidor final nos 60 (sessenta) meses anteriores à sua fixação.”

 

De início, partindo-se da atual realidade em que o ICMS de operações com diesel se dá por substituição tributária (ICMS-ST), o que se busca é permitir, por mecânica distinta da monofasia com alíquota específica (ad rem), desvincular o preço real das operações e o quantitativo de tributo a ser recolhido.

Esse é, indene de dúvidas, o motivo determinante desse preceito: reduzir o impacto natural de uma tributação percentual sobre o preço do diesel. Guardemos esse elemento de motivação por ora, mas cientes de que ele será alçado em breve ao protagonismo.

Mostra-se evidente que se trata de uma norma provisória, para aplicação somente enquanto o CONFAZ não trata efetivamente da monofasia para os combustíveis elencados no artigo 2º: “enquanto não disciplinada…”.

Ademais, na expressão “anteriores à sua fixação”, verificamos que não se trata – nem poderia, já que a LC 192 é um ato normativo federal e o ICMS é tributo estadual e distrital – de um comando normativo de eficácia plena e aplicabilidade imediata; é dizer, o regime provisório só será implementado por ato das UFs que detêm competência constitucional para disciplinar o ICMS.

Objetivamente, a norma é clara ao prever que o regime provisório será aplicado apenas a operações com diesel; não existem essa disciplina e essa viabilidade para a tributação “por ICMS-ST” de outros combustíveis.

O elemento temporal fica também evidente para essa orientação: o regime provisório vigerá desde a sua fixação até a regulamentação efetiva para implementação do regime monofásico ou o dia 31/12/2022, o que ocorrer primeiro.

O regime provisório não busca alterar as alíquotas já aplicadas por cada UF para as operações com diesel, mas impõe que a base de cálculo seja fixada por cada uma delas (“em cada Estado e no Distrito Federal”) com base em um valor dolosa e premeditadamente fictício, qual seja, “a média móvel dos preços médios praticados ao consumidor final nos 60 (sessenta) meses anteriores”.

Trata-se, sintetizando apenas gramaticalmente, de um regime provisório de ICMS por substituição tributária (ICMS-ST) para operações com diesel, de modo que a tributação se dê com base em um valor predeterminado e intencionalmente inferior ao realmente praticado pelos agentes no referido segmento.

Neste espectro material, o art. 7º da LC 192 – exceto pelo aspecto formal de ser obra da União, e não dos estados – se assemelha ao sistema de congelamentos temporários (e sucessivos) de ICMS sobre combustíveis praticado pelos estados por meio dos Convênios CONFAZ nº 192/2021[8], 01/2022[9] e 15/2022[10].

Então, falemos sobre o congelamento e os perigosos desdobramentos dessa artificialidade: não raro, a lei pode tentar conformar os fatos e produzir uma nova realidade. Acontece que, se assim deseja fazê-lo o Estado, alguns cuidados são necessários sob pena de o ordenamento pecar pelo pior dos defeitos: criação de paradoxos pela não aderência a elementos inescapáveis dessa realidade.

Vamos, brevemente, ao primeiro grande problema, que na verdade nem é novo haja vista medidas pretéritas, como a prevista nos Convênios CONFAZ a que fizemos menção: como se compatibiliza um congelamento de base de cálculo para ICMS-ST com a leitura do art. 150, §7º, da CRFB/88, operada pelo STF em 2016[11]?

Aqui precisamos atentar o leitor para o fato de que estamos próximos de ingressar em um verdadeiro labirinto; dúvidas de imenso relevo, para muito além das meramente acadêmicas, se avizinham – e nossa bússola nos permite apenas algumas poucas certezas:

– não existe benefício fiscal tácito (art. 111 do CTN);

– muito embora não haja precedente judicial vinculante nesse sentido, diversas UFs já preveem normas para cobrança do ICMS-ST complementar quando o fato gerador real ocorre em valor maior que o presumido (não aprofundaremos aqui uma crítica, embora registramos o entendimento pessoal de que a ideia de complemento, longe de meramente simétrica ao direito de restituição, viola a capacidade contributiva e a natureza do ICMS como imposto indireto);

– não existe substituição tributária naturalmente definitiva (Tema de Repercussão Geral nº 201); e

– PMPF (preço médio ponderado a consumidor final) só é legítima base de cálculo para substituição tributária quando cumpridos os requisitos normativos para tanto (Convênios CONFAZ nºs 110/07 e 142/2018[12] e Lei Complementar nº 87/96).

 

Como podemos, sem colocar em xeque a segurança jurídica mister a atender ao elemento político-finalístico da norma, afirmar um “ICMS-ST” congelado e definitivo se o STF entendeu que a substituição tributária por antecipação não pode ser definitiva?

Dito de outro modo, o desafio aqui está em como driblar cada um dos paradoxos sem incorrer nos demais.

Nosso guia principal será a aglutinação de valores materializados nos arts. 5º e 37 da Constituição desta República; os princípios da segurança jurídica e da moralidade no exercício de toda e qualquer função pública – inclusive, por óbvio, a atividade tributária.

É verdade, inegável e pública, que os Estados promoveram o congelamento com o propósito declarado e evidente de desvincular o tributo (ordinariamente cobrado ad valorem) e reduzir o preço dos combustíveis; a expressão “renúncia de receita dos estados” é imensamente utilizada na mídia[13], inclusive em pronunciamentos do COMSEFAZ[14].

Este, portanto, é o motivo determinante para o congelamento do ICMS sobre combustíveis: dele não se pode jamais dissociar. Em nossa visão – talvez pueril, concedemos – temos por consequência apenas um ponto de chegada constitucionalmente aceitável: se as UFs de fato estão abdicando de receita, se estão “fazendo sua parte para o combate à inflação nos combustíveis”, então não lhes pode ser dado o direito de promover qualquer tributação complementar (sob o fundamento de que o fato gerador real ocorreu a maior que o presumido).

Não há cabimento algum, seja nos espectros moral, político ou mesmo de bom senso, em admitir que alguma UF atente, hoje ou amanhã, contra a promessa feita perante a sociedade. Mas o multiverso fiscal (Alfredo Augusto Becker já nos anunciara há tempos o “manicômio jurídico-tributário“), como o da Marvel[15], é tudo, menos linear: há estados aplicando suas dinâmicas ordinárias mesmo no contexto autodeclarado como excepcional[16], e cobrando os complementos.

 

Dispomos então de um ponto de partida, de um ponto de chegada… mas de um mapa ainda incompleto; e temos o compromisso e a urgência de colaborar na construção de um caminho juridicamente seguro para manter Ulisses atado ao mastro quando as sereias aparecerem: é preciso dar segurança aos contribuintes substituídos de que não sobrevirá cobrança complementar e conferir conforto aos agentes públicos para não tributarem esse complemento, mesmo quando há normas vinculantes em suas UFs aparentemente as viabilizando.

Vejamos a estrutura normativa atual do Convênio CONFAZ nº 110/2007 para o congelamento:

 

Cláusula décima As unidades federadas deverão, na hipótese de inclusão ou alteração, informar a margem de valor agregado ou o PMPF à Secretaria-Executiva do CONFAZ, que providenciará a divulgação das margens e publicação de Ato COTEPE, de acordo com os seguintes prazos:

I – se informado até o dia 5 de cada mês, deverá ser publicado até o dia 10, para aplicação a partir do décimo sexto dia do mês em curso;

II – se informado até o dia 20 de cada mês, deverá ser publicado até o dia 25, para aplicação a partir do primeiro dia do mês subsequente.

  • 1º Quando não houver manifestação, por parte da unidade federada, com relação à margem de valor agregado ou ao PMPF, na forma do caput, o valor anteriormente informado permanece inalterado.
  • 2º Na divulgação das margens de valor agregado e no Ato COTEPE que publicar o PMPF, deverão estar indicadas todas as inclusões ou alterações informadas pelas unidades federadas na forma do caput.
  • Excepcionalmente, no período de 1º de novembro de 2021 a 30 de junho de 2022, as informações de margem de valor agregado ou PMPF serão aquelas constantes no Ato COTEPE vigente em 1º de novembro de 2021.
  • 4º No período mencionado no § 3º, em caso de mudança de alíquota pela unidade federada, o valor do PMPF poderá ser alterado para adequação do valor fixado à nova carga tributária.” (grifos nossos)

 

Duas expressões saltam aos olhos: o “excepcionalmente”, na parte inicial do §3º, e a “nova carga tributária”, esta na parte final do §4º. Esses elementos agregam à nossa sugestão de que o congelamento não se coloca, absolutamente, como uma espécie dentro do gênero da substituição tributária; trata-se de instituto excepcional que se localiza, no máximo, a seu lado.

Assumamos a não utilização de MVAs para dar sustentação a nosso argumento: uma ST natural depende inexoravelmente de um PMPF igualmente natural. Sem a presença de um deles, o outro não existe.

Dessarte, se o congelamento de ICMS para combustíveis é uma medida tributária excepcional, ela se coloca em um espectro normativo principiologicamente diverso daquele previsto para o ICMS-ST “ordinário”. Enxergamos dois blocos lógico-normativos montados cuidadosamente para as relações jurídicas em questão, e cada um deles partindo de premissas divergentes.

 

– Premissa do ICMS-ST ordinário: perseguição da realidade

– Consequência: viabilidade de complementos e restituições.

 

Acontece que a premissa estabelecida no congelamento é diametralmente oposta àquela do sistema da ST ordinária: os estados não querem olhar para a realidade dos preços quando da tributação.

E, se partimos de premissas tão divergentes (e o ordenamento jurídico é um sistema – e, por isso, harmônico), não vislumbramos como adequado entender-se que se pode gerar uma única consequência.

Com espeque nessa lógica normativa, entendemos que não podemos completar algumas lacunas textuais do bloco do congelamento com elementos da ST ordinária que com ele não guardam compatibilidade mínima.

Então, fica vedado um irrestrito diálogo das fontes: ou o congelamento (que não é ST) se faz acompanhar de normas expressas suficientes para a cobrança de complemento (o que atentaria contra a ideia nele contida de “norma carga tributária”) ou, ausentes estas, a tributação será definitiva.

E, diga-se, apenas leis formais dos próprios estados nos parecem veículos normativos apropriados para gerar a matriz de legítima responsabilização tributária do contribuinte substituído – sujeição passiva, quantificação e qualificação da cobrança.

O quadro abaixo auxilia nossa tentativa de demonstração:

 

Elementos ICMS-ST normal Congelamento de ICMS
Riqueza tributável Indexação natural entre preço e tributo Desindexação artificial entre preço e tributo.
Base de cálculo PMPF que acompanha a realidade oscilante. Preço congelado
Definitividade Em alguns estados já existem normas estaduais prevendo restituição e complemento Não existem normas estaduais prevendo complementos

 

A máxima aqui é: se o Fisco tenta tributar a realidade (pela via da ST e prevendo um PMPF que redunde dos estudos necessários) e não consegue por elementos alheios ao cumprimento de seus ônus, serão devidos os complementos (desde que haja lei formal prevendo) e restituições.

Contudo, quando o Fisco dolosamente desprende-se da realidade, não lhe é dado buscar o referido complemento com base na realidade, e robustece essa visão a ausência de lei formal específica a prevendo.

O congelamento (opção exclusiva dos Estados, recorde-se sempre!) subverte a base de cálculo, de modo premeditado. Ao fazê-lo, veste-se de exceção e desprende-se não apenas de uma parte conveniente, mas de todo o bloco normativo nuclear da não definitividade aplicável à ST. Vinculados a estas ideias, precisamos afirmar que o congelamento:

 

(i) não é expressão de ST natural;

(ii) tende a ser definitivo, pela forma como foi construído; e

(iii) para não ser definitivo, necessitaria de tratamento normativo específico (por lei formal estadual) prevendo a cobrança de complemento.

 

Note-se, porque de relevo: não estamos aqui sugerindo que estamos diante de um caso de ST e que existe um benefício fiscal para proibir a cobrança de um complemento (esse caminho geraria o paradoxo de inexistência de benefício tácito).

Nossa opinião é de que o congelamento, também porque autodeclarado como excepcional, não se insere nos aspectos de não definitividade do ordenamento aplicável à substituição tributária – um estudo específico de localização e de constitucionalidade merece ser realizado, mas não é por ora o nosso foco, bastando aqui refletir que se trata de uma desejada ficção.

Logo, por se colocar o congelamento como cogênero, e não como espécie do gênero ST, a premissa de motivação vinculante e determinante que lhe deu origem leva-nos à conclusão de que as leis formais estaduais que preveem o complemento de ICMS-ST em casos ordinários não encontram hipótese de incidência para aplicarem-se à excepcionalidade do congelamento.

Nada impede que o mesmo Convênio que instituiu os congelamentos permita também com clareza a cobrança dos complementos, mas ainda assim teremos um sistema e um regime próprios, que deverão observar – entre outros – a necessidade de internalização por lei de cada estado e as regras de anterioridade.

É que, da mesma forma que não existe dispensa de tributo sem lei específica, só existe novo tributo em novo espectro após a edição de lei específica. Eis, ao cabo, um resumo do labirinto que tentamos percorrer juntos:

 

  1. a) não existe substituição tributária (ST) ordinariamente definitiva: é da sua natureza, segundo o STF, manter-se conectada à realidade. Se os estados optaram por tributar conforme uma ficção premeditadamente desanexada da realidade (e aqui não estamos ainda perscrutando a constitucionalidade dessa iniciativa), ST aqui não há e o bloco normativo a ela conectado não se aplica ao congelamento naquilo com que conflitar (eis abaixo o mais marcante exemplo de conflito), estabelecido aqui um limite ao emprego de analogia.

 

  1. b) não existe PMPF “congelado”: por ser preço médio ponderado a consumidor final, é elementar de sua constituição o acompanhamento dos preços efetivamente praticados no mercado.

Congelá-lo significa estabelecer uma nova base de cálculo, chamemo-la como quisermos, mas diversa do PMPF, porque este guarda em seu DNA a perseguição da realidade; sua subversão dolosa pelos Estados demonstra um descolamento desejado entre realidade e tributação. O PMPF assim deixa de sê-lo; vira apenas uma base premeditada e fictícia de tributo.

Retornar à realidade para cobrar algum complemento seria um ato contraditório com as premissas jurídicas e políticas da desnaturação a que aludimos acima: apenas um PMPF real pode ser desafiado e cotejado com a realidade.

 

  1. c) se existe lei formal e específica prevendo uma tributação, e não existe dispensa de tributo sem outra lei específica, é devida a cobrança: hoje existem leis em diversas UFs prevendo a cobrança de complemento do ICMS-ST junto ao último contribuinte substituído quando o fato gerador real na venda ao consumidor final ocorre em valor superior àquele empregado na substituição tributária por antecipação.

Mas, aqui empregando um modelo de diálogo de fontes (regra-regra conversa com regra-regra, não com regra-exceção), a partir da realidade de que o congelamento é uma excepcionalidade, verificamos ser um fato que não existe, em nenhuma UF, lei prevendo a viabilidade de cobrança do complemento durante o período de congelamento. E, aqui, o silêncio é eloquente: as UFs hoje não querem essa cobrança.

Logo, ausente o legítimo normativo específico para dar tratamento no contexto da excepcionalidade, forte nos arts. 150, I, da CRFB e 3º e 97, I, do CTN, inviável a cobrança do complemento enquanto durar o período de exceção.

 

Concluindo, temos que inexiste precedente judicial vinculante afirmando a viabilidade de cobrança de complemento de ICMS-ST e entendemos que há argumentos razoáveis para combater essa exigência mesmo no cenário de ICMS-ST ordinário (princípio da capacidade contributiva e caráter do ICMS como imposto indireto).

Em um segundo nível de estudo, compreendemos também que a não definitividade do ICMS-ST depende inexoravelmente de que o PMPF seja definido consoante as previsões normativas dos Convênios CONFAZ 110 e 142 e Lei Complementar 87/96, que demandam pesquisas em busca do valor real de venda final ao consumidor.

Admitindo a não definitividade da base de cálculo desfavorável ao contribuinte substituído, acreditamos que é necessária disciplina por lei formal estadual, na medida em que se estabelece responsabilidade específica de recolhimento a um contribuinte ordinariamente substituído. Se há uma nova obrigação principal e um novo sujeito passivo, é nossa compreensão que essa exigência só se legitimaria se veiculada por ato normativo primário (lei).

Há estados que preveem o complemento de ICMS-ST ordinário por ato normativo diverso de lei. Entendemos, em casos afins, haver argumentos sólidos para contestar eventual cobrança.

Nos estados, porém, que preveem o complemento de ICMS-ST ordinário por lei, restam os demais argumentos: durante o período de congelamento, na medida em que se promove uma ficção (fixação específica, extraordinária e temporária) de base de cálculo, acreditamos que essa base de cálculo não pode ser adequadamente denominada PMPF, e que, portanto, o regime aqui deveria ser tratado de modo distinto do que ocorre no ICMS-ST, ao menos no que tange à viabilidade de cobrança do complemento.

Nunca nos permitamos esquecer que o motivo determinante do congelamento é exatamente desvincular o tributo de um preço que – pela conjuntura ainda atual – tende ao incremento.

Não há nenhum estado com lei ou qualquer outro ato normativo específico permitindo a cobrança do complemento de ICMS neste contexto excepcional do congelamento.

Por falta de lei e por inadequação entre a cobrança de complemento e os motivos determinantes do congelamento, entendemos pela inviabilidade de tal cobrança e pela existência de fundamentos aptos a configurar os riscos dessa discussão judicial como ganho (pelo menos) possível.

 

Parece-nos, não obstante a aparência de deus ex machina, que a solução mais simples estaria em se reconhecer normativamente, e tão explicitamente quanto possível, que o congelamento era nada menos que um benefício fiscal concedido pelas UFs (que deverá se fazer acompanhar de todo o pacote de manutenção de créditos correspondentes), o que decerto exigiria a esperada aprovação por Convênio (art. 155, §2º, g, CRFB/88 c/c Lei Complementar nº 24/75) e a ratificação por leis estaduais.

Mas, como este não foi o caso (e o protagonista das obras de Conan Doyle nos ensina que as coisas são o que são – “it is what it is”), e na medida em que benefícios não se presumem, sobra-nos uma construção jurídica que tenta contribuir para que prevaleçam alguns dos princípios que deveriam ser a base de qualquer República Democrática em um Estado de Direito: aqueles que materializam os valores de transparência, segurança, confiança e moralidade na atuação do Estado.

Sem uma solução normativa explícita (etiqueta flagrante de benefício) ou o cumprimento de um severo ônus argumentativo, entendemos que poderá ser gerada uma imensa tensão acerca dos riscos de uma cobrança retroativa de complemento de ICMS-ST por parte das UFs, especialmente daquelas que em 2023 venham a ser governadas por pessoas e partidos diferentes daqueles que hoje se encontram nos palácios de governo.

Acreditamos, não obstante, que essa tensão seria resolvida de modo favorável aos contribuintes, considerada a abundância de elementos – políticos, jurídicos e macroeconômicos – caracterizadores da impossibilidade de cobrança de complemento durante o período de congelamento de ICMS sobre combustíveis.

Todavia, adentrando novamente o multiverso fiscal tupiniquim e para que não soe o vocábulo “tensão” como exteriorização de paranoia injustificada, é de se apontar o quão infeliz (e não raro) é notar que UFs cobram de contribuintes valores relativos a benefícios fiscais por eles mesmos concedidos e declarados inconstitucionais por vícios formais e procedimentais imputáveis de modo exclusivo… ao próprio poder fiscal concedente (vide o exemplo da ADI 3674/RN).

Interessante notar que a horizontalidade dos direitos fundamentais fez brotar e germinar a tese dos deveres anexos da boa-fé objetiva e dentre eles a destacada vedação a comportamentos contraditórios, no latim bastante conhecido ne venire contra factum proprium, ótimo se o ente tributante respeitasse, pois não?

O problema se agrava, no caso em estudo – instituído pelos congelamentos e maximizado pela pretensão do art. 7º da LC 192 –, quando percebemos que a base de cálculo desse possível novo ICMS do diesel, porque calculada com base nos preços finais dos últimos 60 meses e em um ambiente de alta do diesel tão crescente quanto o observado desde 2018, fica menor não apenas que o preço final real, mas não alcança sequer o preço da primeira venda do diesel, operada pelo importador/produtor.

Aqui, a dificuldade de cálculo e de sistemas salta aos olhos quando das simulações: o ICMS da própria operação inicial já supera o ICMS congelado esperado ao cabo; os problemas que se esperavam nos elos futuros da cadeia de comercialização já ficam evidentes desde o marco zero, assim como se evidenciam a inescapável realidade de que o congelamento não é, ontologicamente, uma modalidade de ST.

A História mostra que a equipe de navegadores que conduzia o Titanic falhou em sua tentativa de detectar e contornar a tempo a pedra de gelo. Carregamos, porém, uma vantagem no cotejo com eles: fomos agraciados com a lição do grande Drummond; ele nos avisou a todos dos obstáculos, das pedras no caminho.

Para os estados, contribuintes e consumidores, talvez ainda haja tempo e meios eficientes de evitar o desastre iminente. As medidas de solução, todavia, precisam ser menos soberbas, artificiais e incompletas (talvez pela ansiedade de palanque), e mais técnicas, jurídicas, hígidas e objetivas, para que naveguemos em mares tranquilos e seguros rumo à monofasia do ICMS para combustíveis – mas uma monofasia de verdade, que resolva os problemas; não aquela que, pelas tantas pedras no caminho, sequer monofásica é.

[1] https://www.history.com/topics/early-20th-century-us/titanic

[2] https://www.pensador.com/frase/MTU1ODE/

[3] https://www.jota.info/legislativo/tributacao-de-combustiveis-icms-monofasia-plp-11-2020-11032022

[4] https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2022/marco/sancionada-lei-que-altera-o-calculo-do-icms-sobre-os-combustiveis

[5] https://tributario.com.br/jgfac19811/icms-sobre-combustiveis-e-ado-68-do-poder-ao-dever-de-legislar

[6] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/03/10/para-frear-alta-de-combustiveis-senado-aprova-mudanca-no-icms

[7] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/plp-16-2021-monofasia-ad-rem-como-remedio-eficiente-para-icms-sobre-combustiveis-24082021

[8] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2021/CV192_21

[9] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2022-1/CV001_22

[10] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2022-1/CV015_22

[11] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/congelamento-icms-combustiveis-03112021

[12] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2018/CV142_18

[13] http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/estados-congelam-icms-de-combusta-veis-por-90-dias/524236

https://jc.ne10.uol.com.br/economia/2022/05/15007749-para-baixar-gasolina-governadores-podem-estender-reducao-do-icms.html

http://www.sefaz.al.gov.br/noticia/item/3005-fazendas-dos-estados-e-distrito-federal-aprovam-o-congelamento-do-icms-por-90-dias

https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/01/27/governadores-congelam-icms-sobre-combustivel-por-mais-60-dias.ghtml

http://www.ms.gov.br/reinaldo-azambuja-avalia-manter-congelamento-da-pauta-dos-combustiveis-mas-quer-beneficio-chegando-ao-consumidor/

https://www.cnnbrasil.com.br/business/renuncia-fiscal-de-estados-sobre-combustiveis-chega-a-r-189-bilhoes-diz-comsefaz/

https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/estados-mantem-congelamento-do-icms-dos-combustiveis-ate-31-de-marco-27012022

https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/01/27/congelamento-icms-combustiveis-ate-31-de-marco.htm

https://www.cnnbrasil.com.br/business/com-novo-congelamento-do-icms-entenda-o-que-muda-nos-precos-dos-combustiveis/

https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-03/confaz-fixa-icms-do-diesel-e-prorroga-congelamento-sobre-gasolina

[14] https://www.novacana.com/n/etanol/politica/comsefaz-conta-estabilizacao-solucao-imediata-combustiveis-130522

[15] https://marvelcinematicuniverse.fandom.com/wiki/Multiverse

[16] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/05/estados-sao-acusados-de-driblar-congelamento-do-icms-por-setor-de-combustiveis .shtml

 


Rodrigo Tomiello da Silva

Advogado

 

Paulo Henrique Garcia D’Angioli

Advogado

 

José Guilherme Fontes de Azevedo Costa

Advogado

 

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra

Carlos Drummond de Andrade